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Contos de Nindäle – Eu sou Fardan

Contos de Nindäle – Eu sou Fardan

Contos de Nindäle – Eu sou Fardan, RPG - Mestre Charles Corrêa
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Eu sou Fardan

Eu sinto tudo, e com isso eu quero dizer, literalmente tudo.

Você já se perguntou o que acontece com toda a sua raiva depois que você faz as pazes com o mundo? E com todo o seu medo depois que descobre que a sombra daquela criatura era apenas um amontoado de barril de cerveja? Com toda a angústia, desespero, frustração?

Eu aconteço. Pois, como eu disse, eu sinto tudo.

A Energia-Mãe vive em tudo o que há e que não há, dos conceitos concretos e abstratos, nas felicidades e nas tristezas. Eu não sei o motivo, talvez não haja nenhum, mas em meus vastos campos úmidos, subindo nas minhas árvores tortuosas, espalhando-se e alcançando minhas nuvens escuras, tudo se acumula, todo o sentimento negativo dos seres que é absorvido pela grande mãe se mistura em meu centro, em meu coração. Eu conheço e sei o lado de luz disso tudo. Mas, tudo que são sombras no mundo, passam. E tudo que passa termina em mim. E eu aguento. Recebo toda essa energia distorcida e rancorosa e a mantenho em mim, em meus lagos e rios, em minha lama e em minhas rochas. Porém, elas não ficam armazenadas. Eu emano de volta ao mundo essas mesmas energias e ali elas se materializam como monstruosidades. As criaturas tenebrosas mais vis deste continente. Como um acúmulo de toda aquela sombra que eu absorvi do mundo.

O Berço das Sombras

E eu assisto os tempos passarem, as eras surgirem, os dragões ascenderem. Os dragões, os grandes dragões, eles entendem mais do que qualquer um o que eu sou. Nós andamos em sintonia. Os pretos particularmente gostam de mim. Assim eu continuo assistindo as criaturas vindas dos escapes de meus acúmulos surgirem, destruírem, se alimentarem. Algumas são inteligentes, criam civilizações, constroem culturas. Outras são selvagens, em busca apenas de alimento constante, independente do que são em seu centro, todas têm a mesma origem: monstros criados dos sentimentos mais impuros e cruéis.

Eu não tenho nenhum remorso ou rancor de ser o que eu sou. Não foi algo que escolhi, mas não é algo que me incomoda. O lar dos monstros é um bom título mas isso não exclui todas as flores que desabrocham à noite e refletem a luz das estrelas, todos os fungos que liberam odores adocicados na chuva e fétidos no sol, todos os lagos lamosos que abrigam inúmeras criaturas e seres vivos. Nem toda a benção que a Energia-Mãe dá aos protetores da humanidade que aqui vivem.

Os Guardiões do Pântano

Não sei exatamente quando esses humanóides vieram. O conceito de tempo para mim não significa muito, mas eventualmente eles vieram. Alguns nasceram e surgiram aqui, alguns decidiram vir e até hoje seus ancestrais se arrependem. O que importa é que um dia eles vieram na terra em que o sol sempre se esconde. Com poucos recursos tenho que admitir que muito foi conquistado. Com a lama aquecida e enrijecida criaram casas; com as plantas se vestiram; foi um jogo de tentativa e erro até descobrirem quais são venenosas e quais não; com suas políticas complicadas eles delimitaram suas tribos e assim lutaram para sobreviver. E eu assisto.

Às vezes, eventos interessantes ocorrem em minhas planícies e cavernas. Um grupo humanóide senciente, um dos que surgiram nas águas fétidas e verdejantes. Conhecidos como homens-sapo, um nome autoexplicativo. Composto por tribos simples que conseguiram manejar sua natureza anfíbia com os rios e lagos, desenvolveram técnicas complexas de caça, utilizando de lanças e armas com pedra e metais simples ou tocando as forças arcanas da Energia-Mãe para entender e controlar o terreno. Geralmente eles caçam em bando. Outros seres tendem a julgá-los como burros ou inferiores devido a uma cultura selvagem e dialetos guturais. Mas eu os vi crescer, os vi nascer da mesma energia caótica e odiosa que criaram os monstros como o Bicho-Papão e desenvolverem uma civilização complexa, estruturada, guerreira e que tem como passatempo preferido sentir a lama entre os dedos.

Algum tempo atrás, talvez em outras eras, os monstros dominavam de maneira brutal, mas já estavam cansados de caçar em minhas terras. Eles planejavam, confabulavam maneiras de cruzar as minhas fronteiras. Eu não interfiro, nada poderia fazer se as crias de meu cerne se espalhassem para o resto do mundo. Esse é o maior perigo de monstros sencientes, eles são capazes de planejar. Há uma beleza intrínseca nesse conceito, capazes de grande compreensão, de entender as consequências de suas ações e ainda assim escolher a crueldade e a brutalidade. São poucas as espécies capazes de tamanho feito. Há uma beleza quando não se convive com esses seres. A líder do grupo era uma monstra sempre coberta de escuridão, um corpo disforme ao mesmo tempo que sólido, membros retorcidos e afiados, olhos gélidos e penetrantes e um boca que sempre sorria, ela se intitulava Matrona da Escuridão e seus planos estavam perto de se tornarem realidade.

Ao mesmo tempo, nas tribos antes mencionadas, dois irmãos treinavam fortemente: Slikk, o mais velho, e Glubmire, o mais novo. Esses dois amavam sua família, amavam treinar, amavam os peixes e insetos que comiam, amavam acima de tudo a sensação de lama entre os dedos dos pés, mas o mais estranho de tudo, eles me amavam profundamente. Veneravam meus campos e cavernas, não se incomodavam pela falta de luz com o sol sempre coberto, viam perfumes na minha respiração fétida, eles sentiam toda a energia negativa que acumulo, mas isso parecia não os incomodar e isso me chamou a atenção. Eu os observei, mas não interfiro.

Vi por anos os irmãos treinarem até crescerem em dois grandes guerreiros e protetores da tribo deles. Mas, às vezes, os homens-sapo são ambiciosos e não há limites para seus desejos. Protetores da tribo não era um título bom o suficiente. Eles queriam proteger tudo, queriam criar sociedades, novos lugares seguros, queriam descobrir novas criaturas, novos monstros, novos seres e novas plantas. Não demorou muito para que os protetores da vila se cansassem das lutas cotidianas contra os monstros cotidianos e inimigos cotidianos e assim saíram para explorar.

Ganharam muitos títulos e apelidos ao longo dos anos de exploradores. Os irmãos atrapalhados, os exploradores de terras vazias, Irmãos assassinos, protetores selvagens, Sapos Saltitantes e por assim vai. E a cada aventura, cada contrato de proteção, cada intoxicação alimentar os dois ficavam mais fortes, mais inteligentes, descobriam cada vez mais seus poderes, aprenderam diversas línguas, dialetos. Até tentaram escrever um livro, mas nunca passaram de um parágrafo. Não demorou muito até sua fama se espalhar pelos meus ventos e não demorou muito até a Matrona querer os irmãos Slikk e Glubmire em seu bando para sair de minhas fronteiras.

O Véu Esmeralda

Uma reunião fora convocada, uma assembleia das monstruosidades capazes de se comunicarem e planejar, isso foi feito num labirinto de túneis abandonados por um antigo Vorme e lá seria planejado o último golpe contra o resto do continente. Os irmãos foram convocados e em sua eterna curiosidade decidiram participar.

Ficaram quietos no canto escuro e úmido da caverna principal enquanto ouviam todo o tipo de criatura. Alguns tinham desejos de vingança, foram caçados como monstros e marginalizados, queriam apenas o reconhecimento de seus desejos e instintos primordiais de comer e caçar. Alguns queriam apenas o sabor da caça e da aventura. Alguns, mais estudiosos, almejavam as riquezas dos outros continentes, estavam cansados da falta de recursos, da falta de preciosidades, esses foram o que os irmãos mais desprezavam. Afinal, eles viam todas as preciosidades que eu gero e sabiam encontrá-las. Mas a Matrona da Escuridão pouco falou e ainda assim os dois sabiam de sua ambição, ela não queria nada além da mais pura destruição, ela não tinha nenhum desejo real, nenhuma motivação, ela apenas queria ouvir o grito dos outros, sentir o cheiro da carne apodrecendo de tudo o que ela queria era caçar e matar. Um arrepio subiu nas costas dos sapos, um vento gélido percorreu seus ouvidos e arranhou sua pele quando a Matrona finalmente lhes dirigiu a palavra:

— E então chegamos até a nossa mais estimada presença, não monstros, não criaturas, mas humanoides. Imagina a minha surpresa quando senti sua espécie pela primeira vez em meus territórios, dois humanoides criados pela mesma energia que nós monstros. Dois humanoides, dotados da civilização e benção do dragão negro feito do mesmo ódio nefasto, raiva virulenta, rancor desesperador que nós. E acima de tudo poderosos a ponto de serem reconhecidos pelas civilizações. Espero ansiosa para ouvir sobre os planos e desejos de vocês.

A fala da criatura se encerrou com uma risada penetrante que ecoou pelos túneis do labirinto capazes de espantar qualquer um que a visse como inimiga. Bom nesse momento em específico quase qualquer um, pois os irmãos não se afastaram.

— Nenhum ódio é nefasto, pois com ele eu crio a determinação para ficar mais forte;

— Nenhuma raiva é virulenta, pois ela cria o meu direito de proteger;

— Nenhum rancor é desesperador, pois nos lembra de nossos direitos;

— Somos de fato feito de emoções negativas.

— Mas também somos feitos da Energia-Mãe. Ela é bela e horrenda.

— Feroz e gentil.

— Mudança — Os dois falaram juntos.

— Não é porque surgimos do ódio que temos que odiar. O belo de viver e explorar é mudar. — Disse Slikk desembainhando sua espada feita de uma pedra negra que reluzia uma luz sem fonte visível.

— E nós JAMAIS abandonaremos este lugar, ele é o nosso lar e nós o amamos de fundo de nossos corações, mesmo quando ele está repleto de raiva. — Disse Glubmire envolvendo seus punhos com rochas e pedras.

Num grito de fúria a Matrona da Escuridão atiçou todos os monstros e criaturas do local a atacarem. A primeira foi uma aranha gigante que avançou pelo teto em direção a Glubmire que a socou despedaçando seu corpo resistente. Imediatamente Slikk pegou o saco de peçonha do inimigo jazido, misturou com uma folha que havia consigo, e com terra criou uma poeira roxa. Ao assoprá-la, o ambiente foi dominado e aqueles que não prenderam a respiração rápido o suficiente caíram num sono profundo. Com a maioria das criaturas caída, Glubimire soltou um canto gutural que deixaria todos os anfíbios orgulhosos. Na sintonia de sua melodia, pilares de pedra emergiam do chão prensado àqueles que resistiram ao pó. Enquanto isso Slikk saltou em direção a Matrona. Ela estava confiante, já matara seres e humanóides muito mais fortes e mais treinados que um sapo convencido. Suas garras eram poderosas, sua couraça era mais dura do que o aço mais resistente. Ninguém nunca a feriu antes. Ela estava confiante até que ouviu como um sussurro vindo diretamente do ar: “Belrock eu lhe peço sua assistência, me ajude a moldar este mundo destruindo aqueles que são meus inimigos, me empreste seu poder pois minha crença e convicção descansam sob seu nome” e a lâmina preta brilhou e uma sombra divina emanou de Slikk a sombra de um dragão que destrói e molda o mundo. A Matrona não sentiu dor quando sua cabeça foi removida de seu corpo, na verdade ela demorou para perceber, mas eu senti emanando dela um último pensamento incompleto “Por…”

A história da batalha se espalhou por toda a fronteira. Um perigo iminente aos outros continentes fora evitado e eles nunca ficaram sabendo disso. Slikk e Glubmire muitas vezes desmentiam seus feitos pois não era atenção que procuravam, apenas aventuras. Com o passar do tempo eles juntaram mais pessoas que tinham o mesmo pensamento deles, esse grupo foi crescendo e se tornou um grupo grande que jurava proteger aqueles que em mim viviam e a me proteger. Em sua primeira reunião oficial estavam para decidir seu nome, o único sugerido fora “Sapos Saltitantes”. Não é meu dever interferir, eu não participo ativamente das histórias do continente, eu apenas sou. Mas nesse dia criei uma exceção. Fiz brotar no chão do fundo de minhas entranhas uma pedra verde maciça, porém fina, tão sutilmente esculpida pelo tempo e pela terra que parecia tremeluzir aos ventos. Olhando-a, um pequeno humano franzino sugeriu “O Véu Esmeralda”. E então eles fizeram o juramento que ao longo das muitas eras mudou e recebeu novas partes, até chegar em sua versão atual:

— Eu juro usar do branco para proteger a vida de todos os seres, usar do preto para construir o mundo com o qual os bondosos sonham, usar do verde para amar o que é natural, usar do dourado para acumular conhecimento e usar do vermelho para proteger os que me importam. Eu juro amar a minha terra mesmo quando banhada em ódio pelos outros. Eu juro nunca deixar os males que nos afligem ultrapassarem nossas fronteiras. Eu juro pelo Véu Esmeralda lutar para mostrar que até as emoções negativas têm seu valor e que o carvão mais escuro produz a fogueira mais cintilante”.

As eras se passaram, os irmãos morreram assim como seus descendentes, novos dragões ascenderam e talvez novos surjam ainda. O Véu se mantém cada vez mais ativo, mas um dia talvez eles se extinguam como muitos outros já o fizeram. Mas eu continuarei aqui, pois é impossível me destruir. Me mudar? Talvez, mas nunca me destruir.

Pois eu sou o continente a oeste, o lar dos monstros, o grande pântano escuro, aquele que tem as flores mais belas e as criaturas mais mortíferas.

Eu sou Fardan.

Sobre Fardan e Nindäle

Este conto foi escrito por Pedro Queiroz Borges, um dos membros do Núcleo Criativo da Nuckturp. E Fardan é um dos países de Nindäle, que você pode conhecer participando de nosso Financiamento Coletivo.

Se você quer conhecer os Materiais de Nindäle, fique à vontade! Há materiais livres para você tanto na página de materiais, quanto nas novidades da página do Catarse.

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