Artifício RPG. lançou um novo conteúdo!
Neste dossiê, abrimos todos os poros de um sistema que não veio pronto — veio pulsando: Entropia RPG. Colocamos o link para download do Entropia Playtest Inicial 0.1. Discutimos como ele nasceu, do colapso silencioso nas streams ao gesto de ruptura contra as fórmulas narrativas do mercado, trouxemos uma biografia dos autores e fizemos uma análise, dando nossa opinião sobre o conteúdo do playtest com atenção crítica: suas mecânicas, escalas, fragilidades e ousadias. E encerramos com uma entrevista profunda e inédita com os autores, em duas vozes e múltiplas camadas. Tudo que você precisa saber sobre Entropia — da origem ao impacto, do PDF ao propósito — começa nas próximas linhas.
O Anúncio
O game designer Peterson Rodrigues anunciou hoje, em seu perfil pessoal no Facebook, o lançamento do PDF 0.1 de Entropia, que abordamos no artigo D20 Culture revela seu próprio sistema de RPG Nacional, em março — sistema de RPG original criado por ele em parceria com Lucas Conti, publicado pela D20 Culture. O material, em estágio inicial de playtest, já está disponível gratuitamente e chega com a promessa de servir como base para diversas franquias com licença oficial no Brasil, incluindo universos além do já conhecido cenário Lacrima.
Hoje liberamos o playtest de Entropia
O sistema original da D20culture escrito por mim e pelo Lucas Conti e que vai…
Posted by Peterson Rodrigues on Tuesday, June 24, 2025
O texto compartilhado por Peterson é direto, mas significativo: “Pro Pet jogador de RPG desde criança, é o sonho tomando forma.” O sistema Entropia surge não só como projeto autoral, mas como motor narrativo que deverá ser utilizado em propriedades intelectuais conhecidas do público brasileiro, transformando o cenário independente com uma abordagem mais ousada e modular. A primeira versão disponibilizada tem foco no funcionamento da mecânica de tensão — uma das marcas registradas do sistema.
Download Entropia Playtest Inicial 0.1
Se você quiser experimentar Entropia RPG na prática, a versão de playtest 0.1 está disponível gratuitamente em PDF no botão abaixo. Essa edição inicial é um rascunho funcional: traz o coração do sistema — a mecânica de tensão — já operando em mesas, eventos e streams, pronta para testes reais. É também um convite aberto: quem baixar, joga; quem joga, transforma. A entropia, afinal, não espera ficar pronta para acontecer.
Neste dossiê, analisamos com profundidade o conteúdo do PDF, suas escolhas mecânicas, estéticas e filosóficas. E ao final do artigo, você confere uma entrevista exclusiva com Peterson Rodrigues e Lucas Conti, na qual falam sobre os bastidores do desenvolvimento, os riscos assumidos e as visões divergentes que moldaram o Entropia. Spoiler: foi uma criação que quase não sobreviveu às próprias ideias.
O Motor das Cinzas
Era uma stream como tantas outras. Microfones ligados, narrativas em curso, dados lançados sem susto. Mas havia algo quebrando. Não nas regras do D&D, que ainda sustentavam suas ficções como um andaime velho sustenta a fachada de um teatro em ruínas — mas no pacto entre quem narrava e quem assistia. E foi ali, sem espetáculo ou anúncio oficial, que o Entropia começou a queimar.
Porque todo sistema nasce de uma fratura.
A D20 Culture, até então reconhecida por licenciar sistemas prontos — Dungeon & Dragons, Avatar Legends — e por transformar franquias de terceiros em vitrines para conteúdo próprio, descobriu que o sucesso acumulado nas mecânicas dos outros não sustentava o jogo real: o da autenticidade narrativa. O jogo onde os corpos na mesa, os silêncios do mestre, os impasses entre iniciativa e interpretação, todos falavam mais alto do que as fichas construídas segundo manuais de 300 páginas. Foi durante essa crise performática que Peterson Rodrigues, até então o rosto editorial e executivo da marca, anunciou o inevitável: “a gente precisa de um sistema que seja nosso”.
Não foi um salto de fé. Foi uma renúncia.
Na entrevista concedida semanas depois do lançamento do primeiro playtest, Peterson recorda o momento de ruptura como uma epifania constrangida. “Estávamos tentando forçar histórias dentro de sistemas que não conversavam com o que a gente queria contar.” Não se tratava apenas de regras incompatíveis com a proposta narrativa dos jogos — mas da incapacidade das mecânicas importadas de lidar com subjetividades latino-americanas, com dores simbólicas, com o caos inerente a quem cria sem orçamentos milionários nem promessas de franquia transmídia.
D&D não bastava mais. E nenhum outro sistema parecia conter o necessário: o vazio criativo que o grupo queria explorar. A entropia.
Esse vazio tem nome, mas não teve pressa.
Foram meses de tentativas em off, modelos rasurados, debates internos entre regras rígidas e estruturas minimalistas. Durante esse processo, Lucas Conti — autor de Mojubá RPG e cofundador do coletivo Lanceiros — entrou em cena. O convite não veio por acaso. Conti já havia criado um dos sistemas mais simbólicos e culturalmente enraizados do Brasil, reconhecido com três prêmios Goblin de Ouro no DOFF 2024: Melhor Cenário, Melhor Coesão de Regras e Melhor Livro Básico. Mas seu trabalho não parava ali.
Além de Mojubá, Conti é responsável por jogos como Egrégora, que explora coletividade psíquica e identidade narrativa, e é um dos idealizadores do Lanceiros, iniciativa voltada à criação de RPGs brasileiros autorais. Sua atuação mescla pesquisa simbólica e crítica mecânica — uma escrita que traduz mitologias em regras e reinventa o jogo como rito.
Peterson conhecia esse repertório. Sabia do peso literário da linguagem de Conti, mas também da precisão com que ele organizava ideias em estruturas narrativas jogáveis. Não era só um designer. Era um operário de mitologias.
A colaboração não foi leve. Não podia ser.
De um lado, Peterson, com sua urgência organizadora, seu desejo de lançar, fazer, entregar. Do outro, Conti, com seu olhar ritualístico, sua tendência ao detalhamento quase litúrgico. Mas o atrito virou combustível. E da fusão entre essas vontades emergiu o contorno inicial de Entropia: um sistema baseado em falhas, em riscos reais, em fichas que não acumulam pontos, mas narrativas de colapso.
A lógica de Entropia nasceu como espelho invertido da lógica do D&D.
Se em D&D o personagem acumula vantagens, poderes e resistências até se tornar quase invencível — aqui, o personagem é chamado ao risco permanente, ao fracasso como regra, à morte como narrativa. O dado que define tudo não é o d20 da esperança, mas o d12 da entropia. Um dado que, mesmo ao mostrar sucesso, recorda que tudo tende ao fim.
E isso não era só mecânico. Era político.
A escolha de criar um sistema próprio em vez de continuar licenciando sistemas consagrados foi, nas palavras de Peterson, “uma forma de tomar as rédeas da linguagem”. Ele sabia que abrir mão do selo de Dungeons & Dragons significava perder público, alcance e talvez patrocínios. Mas também sabia que continuar fingindo liberdade dentro de regras alheias era pior. “A gente estava tentando fazer crítica social com mecânicas de combate medieval. Era uma prisão.”
Do ponto de vista editorial, a decisão não poderia ser mais arriscada. A D20 Culture estava habituada à zona de conforto das IPs prontas. Aventurar-se em sistema próprio implicava lidar com playtest, revisão contínua, risco de falha pública. Mais do que isso: implicava abrir mão da lógica de mercado centrada em “manual definitivo” e aceitar que o jogo, tal como os personagens criados nele, deveria sempre estar em risco.
E estava.
O Playtest 0.1, liberado em PDF gratuito, carrega as marcas dessa escolha. É um documento instável, incompleto, simbólico. Mas também é o rascunho de um gesto raro no mercado brasileiro de RPG: criar um sistema próprio não como vitrine autoral, mas como necessidade funcional. O Entropia, como bem aponta a própria introdução do PDF, “não nasceu para competir com ninguém — nasceu para servir àquilo que queremos narrar”.
E o que querem narrar?
Histórias que falham. Aventuras onde não se salva o mundo. Sessões onde o jogador precisa decidir entre continuar ou manter a integridade simbólica de seu personagem. Arcos que terminam em ruína, porque só a ruína permite recomeço.
E, nesse sentido, o Entropia não é apenas um sistema: é um manifesto contra a ilusão de controle. Contra a expectativa de vitória. Contra o jogo como acúmulo.
A D20 Culture se arriscou. Mas não sozinha. Ao trazer Lucas Conti para o centro do processo, Peterson Rodrigues deixou claro que o projeto não era um produto de CEO, mas um ritual coletivo. Um sistema feito por jogadores reais, em mesas reais, que estavam cansados da artificialidade dos grandes sistemas. Um sistema que se recusa a ser neutro.
O motor que move Entropia não é um motor clássico. Não há engrenagens suaves, não há fluidez garantida, não há promessa de equilíbrio. O que há é cinza. Rastro. Incômodo.
É isso que arde no coração do sistema.
E é isso que faz dele mais do que um conjunto de regras.
É linguagem. É posicionamento. É renúncia.
Um sistema que não nasceu para vencer — mas para narrar o que resta quando tudo se quebra.
Duas Vozes, Uma Ruína
Antes do sistema, havia o silêncio.
Não aquele que se instala entre turnos ou que se repete quando um jogador pensa demais para agir. Mas um silêncio estrutural. A ausência de uma gramática. Um vazio entre a estética e a mecânica que corroía aos poucos o propósito narrativo da D20 Culture.
Peterson Rodrigues, já descrito como o “corpo industrial” da editora, tentava organizar esse caos como quem organiza cinzas. Tinha pressa. Tinha metas. Tinha os olhos voltados para a sustentação da editora como projeto contínuo. Mas havia algo que os frameworks herdados não podiam mais conter: o desejo de contar histórias onde o fracasso não fosse exceção. Onde o herói não fosse sempre uma variável de dano. Onde a jornada não estivesse marcada por talentos desbloqueáveis e combate balanceado, mas por rupturas, dilemas e esgotamento narrativo.
Foi nesse momento que entrou Lucas Conti.
Conti já era conhecido por seu trabalho em Mojubá, um RPG afrocentrado que recusava a neutralidade mecânica ao propor uma estrutura baseada em orixás, caminhos simbólicos e escolhas rituais. Mais do que um autor de RPGs, era um escrevedor de sistemas com alma. Um arquiteto de mitologias. Seu nome circulava em grupos alternativos de design narrativo como referência não apenas de ousadia temática, mas de coerência entre forma e função. Seu jogo não era sobre ambientação afro; era uma expressão da cosmologia africana convertida em escolhas dramáticas, em estruturas de jogo, em experiências simbólicas.
Peterson sabia disso.
Sabia que Conti pensava RPG como quem pensa poesia litúrgica. Que suas estruturas não visavam simetria, mas propósito. Que suas fichas não se organizavam como planilhas, mas como mapas do destino.
E ainda assim o chamou.
Não para moldar Entropia em sua própria estética, mas para romper com o automatismo técnico que tornava o sistema apenas uma ferramenta. O que Peterson buscava era a transformação de uma lógica de engine em uma gramática de colapso.
E Conti aceitou.
O que se deu a partir daí não foi uma escrita conjunta no sentido convencional. Não há páginas marcadas com assinatura dupla, nem blocos de texto que denunciem claramente a autoria de um ou de outro. Mas há um corpo estranho pulsando por dentro do Entropia — e ele é híbrido. Ele não nasce de consenso. Ele nasce da tensão.
Peterson trazia as cicatrizes da produção. Sabia o que funciona numa mesa transmitida ao vivo pela Twitch @D20CultureBR, o que confunde o jogador iniciante, o que trava uma sessão. Lucas trazia os ossos da dramaturgia. Sabia o que destrava uma história. O que opera o símbolo. O que permite que uma ficha fale por si — e não apenas informe.
Essa fusão se manifesta já nas premissas fundantes do sistema.
Não há níveis.
Não há classes.
Não há fichas padronizadas que organizam os personagens segundo arquétipos previsíveis. Em vez disso, há “Aspectos”. E os aspectos não são poderes. São ângulos. São desvios de identidade. São feridas abertas por onde escorre a personalidade do personagem. Um guerreiro, no Entropia, não é um guerreiro — é alguém cuja história o levou a empunhar armas. Mas o que conta não é a arma, nem a perícia. É a marca que isso deixou.
Não há “atributos” no sentido clássico.
O sistema propõe “Fundamentos” — pilares existenciais que definem o modo como o personagem se relaciona com o mundo, com o corpo, com o acaso. A ficha não descreve o que o personagem faz melhor, mas o que ele suporta pior. O que o desestabiliza. O que o corrói. É um sistema que foca na rachadura, não na armadura.
Esses conceitos não surgem do acaso. São, nitidamente, heranças de Conti. A recusa do poder como objetivo. A inversão da lógica de construção de personagem. A evocação da falha como possibilidade estética. Elementos que já estavam presentes em Mojubá — mas que aqui ganham um corpo diferente, filtrados pela urgência produtiva de Peterson, que trazia a exigência de que tudo aquilo também funcionasse numa campanha pública, num one-shot, numa live.
Essa exigência obrigou Conti a condensar. A formatar sua linguagem sem neutralizá-la. E obrigou Peterson a aceitar que não existe sistema rápido quando se deseja sistema verdadeiro.
A fusão entre os dois se manifesta, sobretudo, no modo como Entropia pensa o “Dado de Entropia”. Não é uma mecânica de aleatoriedade. É uma declaração de guerra contra a expectativa de controle. Todo personagem rola esse dado, e com ele carrega a lembrança constante de que a ruína está próxima. A entropia não é um acidente de percurso. É o percurso.
Nesse ponto, percebe-se a influência conjunta.
Peterson, com sua experiência em sistemas como Avatar Legends, sabia que dados geram tensão — mas também que tensão mal calibrada gera frustração. Conti, por sua vez, sabia que a frustração é parte da linguagem do mundo. Que sistemas que protegem os jogadores da dor simbólica geram aventuras estéreis. Juntos, fizeram do Dado de Entropia uma ferramenta de angústia dramatúrgica. Um lembrete mecânico de que todo avanço custa. Que todo sucesso apodrece.
Não é difícil perceber que essa visão contradiz os pilares de quase todos os grandes sistemas tradicionais.
E é essa contradição que define Entropia.
Na entrevista, Conti afirma que “as regras são uma forma de oração”. Que um sistema que mente sobre a natureza do mundo é um sistema falho. Que todo jogo é um espelho, e que o que se vê nele depende de onde se posiciona a luz.
Peterson, em outro momento, diz que “queria um sistema onde o jogador não dominasse tudo”. Onde a ficha não fosse um escudo, mas uma exposição.
Ambos, sem usar essas palavras, estavam construindo um jogo vulnerável.
E é isso que o Entropia promete: uma experiência onde o mestre não é um narrador onisciente, onde o jogador não é um herói, onde a mesa não é um espetáculo, mas uma convocação ritual.
Por isso o sistema se recusa a fechar-se. Por isso está em playtest. Por isso as regras ainda tremem.
Porque o que importa, neste momento, não é a entrega perfeita — é a escuta. O Entropia é um sistema que ouve. Que está sendo moldado à medida que é lido, jogado, criticado. Que não teme a revisão. Que sabe que a ruína é parte do caminho.
Essa abertura, contudo, não deve ser lida como fragilidade. Ela é, talvez, a parte mais radical da proposta. Em um mercado onde sistemas surgem como promessas fechadas, como manuais definitivos, como PDFs de 300 páginas que nada mudam após o lançamento, o Entropia surge como um organismo em mutação. Como um jogo que ainda está sendo escrito. Como um sistema que não deseja apenas ser jogado, mas descoberto.
Esse gesto, ao mesmo tempo literário e político, é a prova final da fusão entre Peterson e Conti.
O primeiro trouxe a fagulha. O segundo, o sopro. E o que se ergue desse encontro não é apenas um sistema — é uma ruína compartilhada. Um convite à quebra. Um pacto de falhas.
Uma mesa de RPG onde o herói não vence. Onde o mestre não domina. Onde o sistema não protege.
Mas onde, pela primeira vez, talvez se diga a verdade.
Análise do Entropia: A Filosofia do Colapso
O Playtest 0.1 de Entropia não se disfarça de manual definitivo. Ele se apresenta com a clareza dos inícios: um documento curto, de poucas páginas, que não promete o que não pode cumprir. Um rascunho funcional, destinado à experimentação. Essa honestidade de forma é sua primeira virtude — e talvez a mais importante.
Ao mesmo tempo, o compromisso com a abertura exige contrapartidas. Um sistema de RPG em playtest não precisa ser completo. Mas precisa ser minimamente jogável. Precisa permitir que o leitor teste, explore, critique e, sobretudo, compreenda. A liberdade só floresce sobre alguma forma de estrutura.
E tá tudo bem, pois um sistema em uma versão 0.1 não precisa ser um castelo — precisa ser chão.
Entropia se apresenta como um sistema de “ascensão heróica” e narrativa flexível, com escalada de poder que vai do local ao divino. A primeira proposta que salta aos olhos é a modularidade de gênero: o jogo se propõe a ser jogável tanto ao estilo Espada e Feitiçaria quanto em cenários futuristas ou de animes. Essa ambição é acompanhada de uma mecânica de “Tiers de Poder”, permitindo ao grupo definir o nível inicial da campanha, de forma semelhante ao que GURPS faz com escalas realistas ou cinematográficas.
O documento inicial deixa clara a intenção de equilibrar essa abertura com uma estrutura funcional. O conceito de “Sessão Zero” é bem trabalhado e destacado como eixo da experiência. É nela que se define o Tier de entrada, o tom da narrativa e a direção estética da campanha. Para um sistema modular, essa é uma escolha acertada: a liberdade precisa de um pacto inicial entre jogadores e Mestre para fazer sentido.
A divisão entre Conceito, Atributos, Arquétipos, Traços e Conhecimentos forma uma estrutura clara, ainda que fragmentada em algumas áreas. Por exemplo: os Atributos estão bem definidos, mas os exemplos de uso concreto em cena ainda são escassos. A ausência de exemplos narrativos reduz a acessibilidade para novos jogadores ou mestres.
Outro ponto positivo é a nomenclatura clara e consistente: termos como “Pontos de Entropia”, “Pontos de Ascensão (PAx)”, “Dado de Entropia”, “Rank de Ameaça” e “Traços” estão bem introduzidos, e mesmo que alguns ainda careçam de tabelas de apoio ou listas completas, seu significado geral é comunicativo. O texto ganha ao se assumir em construção.
A Estrutura dos Atributos e Ranks
Entropia trabalha com seis Atributos principais: Poder (POW), Precisão (PRE), Agilidade (AGI), Resistência (END), Espírito (SPI) e Mente (WIL). É uma divisão tradicional, mas eficiente. Esses atributos definem as capacidades do personagem, e são mensurados por um sistema de “Ranks”, de E (fraco) a S (divino). Cada rank vem acompanhado de um modificador numérico.
Esse sistema lembra abordagens como a de Mutants & Masterminds, onde escalas amplas e letras substituem pontuações tradicionais. A vantagem é clara: é intuitivo e comunica poder de forma estilizada. A desvantagem é que, sem uma tabela de referência que relacione Rank e resultados esperados, jogadores podem se perder na diferença entre, por exemplo, um Rank B e um Rank A em contexto de jogo.
A divisão entre Atributos Primários e Derivados (como PV e Energia) também é funcional, mas novamente falta uma tabela ou seção específica para cálculo desses valores, o que obriga o leitor a conectar partes diferentes do texto para completar uma ficha.
Tiers de Poder e Escalabilidade Narrativa
Um dos elementos mais interessantes de Entropia é sua estrutura de escalabilidade. Os Tiers são divisões de poder narrativo: Local, Regional, Continental, Planetário, Cósmico e Ascendido. Eles funcionam como uma moldura para o tipo de aventura que se quer contar.
Esse modelo resolve com elegância um problema comum em sistemas genéricos: a falta de critério para medir o tom e escopo da campanha. Em vez de tabelas com dificuldades baseadas em nível ou classe, Entropia define claramente que um personagem de Tier Cósmico precisa lidar com ameaças de escala planetária ou maior. Isso cria um vínculo direto entre narrativa e sistema.
Ainda assim, seria proveitoso que cada Tier viesse acompanhado de exemplos de personagens, ameaças e desafios adequados, como no caso de Luna (Rank B em Poder). Esse tipo de recurso facilitaria o entendimento do salto de escala entre Tiers e tornaria o documento mais didático.
PAx: O Combustível da Ascensão
Os Pontos de Ascensão (PAx) são a moeda principal de customização em Entropia. Eles são usados para adquirir Atributos, Traços, Conhecimentos e outras melhorias. O sistema é funcional e oferece liberdade significativa para composição de personagens. Também incentiva planejamento e priorização.
Contudo, a progressão dos custos poderia ser mais clara. O documento indica que certos elementos são mais baratos na criação e mais caros na progressão, mas faltam tabelas que explicitem isso com exatidão.
Outro ponto que pode evoluir é a relação entre PAx e narrativa. A ideia de que cumprir uma “Missão Pessoal” do Arquétipo rende PAx é excelente, mas o PDF não detalha como o Mestre deve avaliar isso. Uma mecânica mais estruturada, mesmo que opcional, ajudaria a evitar subjetividade excessiva.
Ficha e Criatividade: Um Espaço em Branco a Ser Preenchido
Por fim, vale destacar que o sistema de criação de personagens é flexível e permite combinações quase infinitas. A presença de Arquétipos e Conhecimentos oferece ao jogador ferramentas para moldar personagens únicos, não apenas em termos de poder, mas de função narrativa. O foco em “maneirice” como critério de escolha é coerente com o tom do jogo.
Ao mesmo tempo, é possível sentir falta de uma ficha-modelo completa. Embora os elementos estejam lá, organizá-los exige experiência prévia com sistemas modulares. Para um documento que visa o playtest e a entrada de novos jogadores, a ausência desse recurso pode ser um entrave.
Começaram agora a cavar os buracos dos alicerces
O Entropia Playtest 0.1 cumpre seu papel de planta baixa para um edifício maior. Ele não é um castelo, mas é um chão firme o bastante para que o grupo se arrisque a construir. A estrutura de atributos, tiers, ranks e PAx oferece uma base interessante para um sistema que pretende evoluir de forma orgânica. Ainda há ausências sentidas, sobretudo no suporte ao leitor novato, mas a proposta está bem delineada.
Mecânica como Gramática do Caos
O Núcleo dos Testes: Tensão como Pêndulo Dramático
Entropia parte de um fundamento familiar: testes baseados em 1d20 + modificador, comparando o resultado com uma Tensão. A nomenclatura, embora distinta da habitual “CD” ou “dificuldade”, cumpre função equivalente. A diferença está na fluidez.
A Tensão não é uma parede fixa. É um pano de fundo ajustável. O MdJ pode aumentá-la em +10 quando um personagem está à beira da morte, ou reduzi-la em -5 se houver preparo prévio ou suporte narrativo. Essa elasticidade, expressa por modificadores explícitos no manual, permite que o mesmo teste varie de trivial a épico com um simples ajuste de contexto. Mais que uma mecânica, é uma ferramenta de pacing.
Isso transforma a Tensão em um instrumento de direção narrativa, mais do que um obstáculo estático. E coloca nas mãos do MdJ não apenas a tarefa de julgar o sucesso, mas de coreografar o drama. Nesse ponto, a estrutura não inova, mas organiza com competência.
Graus de Sucesso: A Escala da Ruína Medida em Dados
O sistema define cinco graus possíveis de desfecho para um teste: Sucesso, Sucesso Parcial, Sucesso Entrópico, Falha e Falha Entrópica. Essa gradação oferece uma paleta dramática rara em sistemas genéricos.
O Sucesso Entrópico é um destaque. Ele ocorre quando o jogador excede a Tensão em 10 ou mais, e permite vantagens especiais — geralmente narrativas, mas também mecânicas, como o dano dobrado no caso de um Acerto Entrópico em combate. Há, inclusive, técnicas que ampliam esse efeito, o que demonstra sinergia planejada entre atributos e especializações. Um sucesso não é apenas um acerto: é um avanço significativo no controle da narrativa.
Já o Sucesso Parcial — quando a rolagem fica até 5 pontos abaixo da Tensão — introduz um grau de ambiguidade tática. A ação se concretiza, mas com limitação, custo ou consequência. O manual oferece sugestões claras: um preço pago, uma complicação narrativa, uma escolha moral. Não é apenas um “acerto com desconto”. É uma decisão que gera ramificações.
A Falha Entrópica, por sua vez, combina dois gatilhos: um resultado 1 no d20 e falha no teste. Seu impacto é descrito como “o pior desfecho possível”, o que deixa margem ampla ao MdJ. Talvez aí caiba, no futuro, uma tabela de desastres — não por rigidez, mas para inspirar o improviso.
Três Ações, Uma Escolha: Combate como Equilíbrio de Custo
Entropia oferece a cada personagem 3 ações por rodada. Isso não é apenas uma multiplicação de possibilidades — é uma declaração de ritmo. Diferente de jogos que privilegiam uma ação principal e movimentos limitados, aqui o jogador constrói seu turno como quem edita uma sequência de combate.
É possível atacar três vezes — mas não impunemente. Cada ataque além do primeiro sofre penalidade de -5 acumulativa. Assim, o segundo ataque recebe -5, o terceiro -10. A matemática desincentiva spam, mas não o proíbe. Isso cria um espaço tático onde arriscar pode compensar, mas exige ponderação. E favorece o uso diversificado de técnicas, feitiços ou ações narrativas, reforçando o combate cinematográfico prometido pelo sistema.
A esquiva é outro ponto de atenção. Se bem-sucedida, anula o ataque. Mas se falhar, o dano recebido aumenta. Isso transforma o ato de se defender em uma aposta — e recompensa quem calcula riscos em vez de apenas resistir.
A lógica do dano também se ancora em escalas claras. Um personagem de Tier Local rola 1d6; um Ascendido, 4d6. Há paralelos evidentes com a evolução de poder em videogames e animes, mas aqui o crescimento numérico também acompanha a ficção. E o dano das ameaças escala de forma proporcional, com dados cada vez mais impactantes conforme o Rank do inimigo.
O Dado de Entropia: Quando o Sistema Rola Contra Si Mesmo
Talvez nenhuma mecânica represente tão bem a proposta do jogo quanto o Dado de Entropia. Ao atingir o Limite coletivo de Pontos de Entropia, o MdJ rola 1d20 — e ativa um dos 20 efeitos listados. Não são sugestões vagas. São gatilhos diretos.
Há consequências mecânicas (como -7 em todas as rolagens até o fim da cena), mudanças ambientais (teletransporte involuntário, quebra de equipamento), distorções narrativas (traições, vilões ocultos, eventos inesperados) e até transgressões estruturais, como troca de fichas entre jogadores. No extremo oposto, um milagre: todos recuperam 5 PV.
Essa aleatoriedade codificada não é caos gratuito. Ela é coerente com o tom do sistema, que busca narrar mundos onde a previsibilidade é um luxo. O Dado de Entropia se torna um sexto jogador. Um agente do acaso institucionalizado. E, ao contrário de mecânicas semelhantes em jogos como Blades in the Dark ou The One Ring, aqui o caos não é um colapso opcional — é inevitável.
Essa inevitabilidade exige preparação por parte do MdJ, que precisa estar pronto para incorporar esses efeitos sem travar a narrativa. Mas também fornece aos jogadores uma tensão estrutural: cada ponto de Entropia usado é um passo rumo ao desconhecido. O poder vem com custo.
Um Equilíbrio Curioso
A mecânica de Entropia, mesmo em sua versão 0.1, mostra um equilíbrio curioso: entre o controle e o risco, entre o domínio narrativo e a falha mecânica. Ainda há espaço para refinar exemplos, clarificar exceções e testar a robustez em longas campanhas. Mas a gramática está lá — e é coerente com o nome que carrega.
Construção, Personalização e Escalada: Criar é Escolher a Queda
O Entropia começa onde muitos jogos terminam: no convite à criação. Mas aqui, criar não é preencher um formulário. É escolher o modo como um personagem cairá. É definir, com antecedência, não o que ele faz de melhor, mas aquilo que irá ruir quando for desafiado. O sistema de construção de personagens do Playtest 0.1 não é apenas funcional — é provocativo. E mais do que isso: é um campo de testes para a filosofia entrópica.
O processo se inicia com três elementos fundamentais: o Conceito, o Arquétipo e os Traços. Essa tríade funciona como um ritual de invocação. Primeiro, o jogador declara quem é o personagem — o Conceito. Depois, define qual é sua missão simbólica — o Arquétipo. Por fim, inscreve os detalhes que o tornam único — os Traços. Não há classes. Não há caminhos pré-fabricados. Há uma estrutura modular que permite combinações múltiplas, algumas narrativamente elegantes, outras mecanicamente caóticas. Todas possíveis.
É aqui que Entropia começa a revelar suas tensões internas. Porque, embora o sistema celebre a liberdade, essa liberdade exige maturidade de design. O equilíbrio entre as escolhas não é automático. Conhecimentos como Tecnologia ou Investigação podem gerar impacto desproporcional em campanhas narrativas. Traços como Invulnerabilidade ou Explosão do Dragão podem parecer desequilibrados em Tiers iniciais. Mas tudo isso é assumido. É o risco da experimentação. O texto do PDF não esconde: está em “período de estresse”. Convida ao erro. Pede retorno. E por isso merece leitura generosa.
Ainda assim, algumas decisões já demonstram acerto. Os Conhecimentos são diversos e bem escalonados entre combate, narrativa e suporte. Culinária é afetiva. Arte é sinestésica. Subterfúgio e Medicina são táticos. Há espaço para o inesperado, para personagens que curam com canções ou vencem conflitos com comida. Isso não é irreverência — é uma aposta estética. E o fato de serem ativados uma vez por sessão ou cena impõe limite natural à sua força, mantendo-os relevantes sem dominar a experiência.
Essa pluralidade se manifesta também no modo como os personagens são descritos: através de seis atributos principais (Poder, Precisão, Agilidade, Resistência, Espírito, Mente), cuja progressão é marcada por Ranks de E (–3) até S (+20). Cada avanço é significativo. Cada ponto de PAx gasto transforma profundamente a atuação do personagem na mesa. O sistema de PAx, aliás, é um dos elementos mais sofisticados do jogo. Ele é, ao mesmo tempo, moeda narrativa e regulador de poder. Permite escolhas ousadas, mas cobra caro por cada passo.
A criação começa com um limite modesto: 20 PAx. Suficiente para comprar um Arquétipo, adquirir alguns Traços e melhorar um ou dois atributos. Mas o suficiente, também, para indicar o caminho que o personagem seguirá. Não há espaço para fazer tudo. Não há espaço para errar sem consequência. E essa escassez forçada obriga decisões significativas desde o início. O jogador precisa decidir se investirá na força bruta ou na magia. Na precisão ou na evasão. No suporte ao grupo ou no brilho individual. O personagem não nasce pronto. Nasce como promessa de colapso.
Ao longo da campanha, novos PAx são adquiridos por meio de avanço narrativo. Cumprir Missões de Arquétipo, sobreviver a desafios, viver — e falhar — com intensidade. Cada PAx investido empurra o personagem um pouco mais na Escala de Tiers, que vai do Local ao Ascendido. A diferença entre eles não é cosmética. Um personagem de Tier Local tem 20 PV e 1d6 de dano base. Um Ascendido tem 180 PV, 80 de Energia e 4d6. Os Feitiços Supremos dos Tiers mais altos podem colapsar estruturas inteiras ou alterar a realidade. Não é um exagero retórico. É literal.
Esse crescimento é intencionalmente desequilibrado. Não há gradação uniforme. Os saltos de poder são dramáticos. De Rank C para B, o modificador passa de +3 para +7. De A para S, de +12 para +20. É uma escalada de poder inspirada em mangás de ação, animes de fantasia e RPGs de combate cinemático. E como tal, exige que a narrativa acompanhe esse ritmo. Um personagem não pode começar salvando uma padaria e terminar enfrentando um deus sem que algo quebre. Esse algo, geralmente, é o mundo.
Mas o Entropia parece ciente disso. Sua proposta nunca foi a simetria. Foi o drama. E nesse sentido, os Arquétipos ajudam a manter o foco narrativo. Cada um deles traz uma Missão Pessoal que recompensa o personagem com PAx ao ser cumprida. Algumas são explícitas (“salve sua irmã”), outras mais simbólicas (“recuse seu destino”). Mas todas têm peso. Todas carregam a promessa de que o personagem só avança se também mergulha na própria ruína.
A ausência de alinhamentos, facções ou lealdades impostas pode parecer um vazio. Mas também é liberdade. O sistema não oferece respostas sobre quem são os vilões ou os heróis. Não divide o mundo em bem e mal. Permite que a mesa construa sua própria mitologia. Ao mesmo tempo, exige responsabilidade. Campanhas longas podem sofrer com essa fluidez. Sem um centro gravitacional, personagens podem orbitar em direções divergentes. Uma possível solução futura seria introduzir mecanismos como Vínculos (à la Dungeon World) ou Círculos (como em Ars Magica), que criem coesão sem retirar liberdade.
No fritar dos ovos no asfalto, como falamos no Tocantins, vale destacar o risco — e a virtude — do sistema de min-max. Como os PAx são totalmente livres para distribuição, é possível construir personagens hiper focados. Um combatente com o máximo de dano. Um conjurador com feitiços absurdos. Um suporte com buffs em cadeia. Isso pode gerar desequilíbrios em mesas com jogadores que desejam experiências distintas. Mas o próprio manual prevê isso. Pede que o MdJ diga “não” quando necessário. E reforça, em sua seção de boas práticas, que “jogar para contar histórias” é mais importante do que “jogar para vencer”.
Essa ênfase ética talvez seja o maior diferencial do Entropia. Um sistema que não recompensa o poder pelo poder, mas que valoriza a escolha estética do colapso. Que permite criar personagens absurdamente fortes, mas que convida — insistentemente — à fragilidade.
Criar um personagem em Entropia é como escrever uma lápide antecipada. Cada traço escolhido, cada PAx investido, cada Tier alcançado — tudo é ruína em preparação. E é por isso que funciona. Porque ao invés de prometer que você vencerá, o sistema pergunta: como você quer falhar?
E essa pergunta, ao que tudo indica, é a mais honesta que um RPG pode fazer.
Ecossistema Entrópico: Arquitetura de Comunidade e Negócio
Houve um tempo em que cada RPG era uma ilha — fechado em si, repleto de chaves, cercado de licenças. Jogadores pediam autorização para criar. Criadores pediam licença para sonhar. O Entropia recusa esse mapa. Em vez de fortaleza, propõe uma encruzilhada. E em vez de cânone, oferece tambor: coletivo, ressonante, suado.
A publicação de uma SRD aberta, ainda em definição jurídica mas anunciada como uma promessa inevitável, não é uma decisão técnica. É uma escolha de mundo. Um gesto de desobediência criativa que busca reconstruir a base sobre a qual o RPG brasileiro se forma. Nas palavras de Peterson Rodrigues, trata-se de “distribuir o material base de forma gratuita e aberta”, como quem entrega não uma regra, mas uma fagulha.
Na superfície, pode parecer estratégia de marketing. Mas embaixo da pele, pulsa algo mais: um modelo de circulação que rompe com a lógica dos manuais encadernados e começa a operar como plataforma viva. O Entropia se declara motor — e não produto. E essa distinção muda tudo.
Pois motores são feitos para mover, não para serem contemplados. Eles rodam, sujam, quebram, recomeçam. E nesse gesto, convidam outros a fazer o mesmo.
Na prática, isso se traduz em algo radicalmente simples: qualquer pessoa — autor independente, coletivo periférico, estudante de design ou narrador com ideias guardadas — poderá pegar a base do Entropia e construir algo próprio. Um suplemento, uma ambientação, uma coleção de técnicas, um bestiário, um sistema novo. A D20 Culture declara que não quer mais traduzir o sistema dos outros. Quer que eles traduzam o nosso.
Conti sintetiza essa postura com uma imagem forte: “Um tambor de escola de samba: cada um toca de um jeito, mas o ritmo é coletivo.” A metáfora vibra no coração da proposta. O Entropia quer ser base rítmica, não solo de clarinete.
Esse modelo, ainda raro no mercado nacional, emula o que edições como a 3.5 e a 5e do D&D realizaram com a explosão da OGL (a Open Game License). Mas vai além. Porque não quer apenas abrir a regra — quer liberar o gesto.
Peterson conta que deseja que o sistema seja como o 3D&T foi para ele: acessível, barato, divertido, livre. Um jogo que uma criança de escola pública possa baixar e, no recreio, jogar. O sucesso, aqui, não está na prateleira, mas na quadra da escola.
Esse é o ecossistema que a D20 Culture busca instaurar: uma base sistêmica aberta, um modelo de negócio híbrido (gratuito para quem joga, opcionalmente premium para quem apoia), uma comunidade ativa e convocada a participar da construção contínua do jogo.
“Criar coisas que você sempre pensou e, às vezes, não era possível.” A frase aparece mais de uma vez. E é mais do que um convite. É uma acusação velada às limitações dos sistemas dominantes — aqueles que, ao se fecharem, também nos fecham.
Nesse movimento, a editora desenha uma teia. Os fios se estendem para além do texto-base. Começam na SRD, atravessam a D20 Saga (revista digital que serve de canal de distribuição e experimentação), passam pelas mesas públicas, streams e eventos, e se fixam no horizonte: as IPs próprias que serão erguidas sobre esse mesmo alicerce.
Peterson afirma que o Entropia “não é só um sistema”. É uma fundação. Uma estrutura para sustentar seus mundos — e os de outros. Em breve, o universo de Lacrima — campanha que consolidou a D20 Culture no cenário de RPG — será totalmente refeito para o novo sistema. Mais do que adaptação, será reescritura.
E não para por aí. Está nos planos da editora usar o Entropia como motor para RPGs licenciados de grandes marcas, como Warner, DC Comics, Harry Potter e Mortal Kombat. Em vez de importar um sistema e forçar um encaixe, a lógica se inverte: o Entropia é a base. O selo. A linguagem.
É nesse ponto que o jogo se transforma em plataforma. Quando não é mais um título entre outros, mas um eixo de criação. Um sistema que embute dentro de si a vocação para derivar.
A SRD não é um anexo. É uma bússola. E nesse mundo novo que se desenha, o PDF gratuito não é o brinde — é o gesto fundador. Lucas Conti afirma que o Entropia não quer substituir nada. Quer proliferar. Quer descentralizar. Quer criar ruído. O ruído criativo é, aqui, o som de muitas mãos inventando juntas.
Ao lado dessa abertura conceitual, há uma infraestrutura pragmática sendo erguida. Um sistema de coleta de feedback já está em funcionamento, com formulários enviados a todos os assinantes da D20 Saga — mais de 4 mil — convidando-os a relatar experiências, descrever fichas, avaliar ameaças, sugerir mudanças.
E o mais importante: não se trata de playtest emulativo. Não é um beta disfarçado de produto final. Peterson foi direto: “O Entropia está em um quarto do processo.” Conti complementa: “O sistema só vai ficar pronto depois que a galera jogar.”
Esse modelo de criação contínua, centrado na comunidade, exige mais do que boa vontade. Exige ferramentas. Por isso, o time promete tutoriais em vídeo, fichas preenchidas, guias rápidos, exemplos de arquétipos, encontros prontos. Tudo para mitigar a chamada “paralisia por liberdade”. O Entropia é ultraflexível, sim. Mas quer ser jogável. Quer ser entendido.
Do ponto de vista de publicação, o sistema seguirá um ciclo orgânico. As atualizações — erratas, correções, ajustes — serão reunidas e lançadas a cada edição ou duas da D20 Saga. Esse ritmo permite testar, observar, ajustar. Permite falhar e corrigir. Permite que o jogo seja um organismo vivo.
O material físico virá depois. Bonito, de luxo, para quem quiser apoiar. Como símbolo, não como fronteira. Como coleção, não como requisito. A base continuará gratuita. A entrada continuará aberta.
Nesse equilíbrio entre gratuidade e sustentabilidade, entre motor e produto, entre caos e arquitetura, se encontra o gesto político da D20 Culture. Um gesto que afirma que RPG não é só o que se joga. É também o que se compartilha.
O Entropia já não é apenas um sistema novo. É uma proposta de convivência criativa. Uma estrutura para sustentar IPs, um tambor para narrativas coletivas, uma fundação aberta que oferece não um conteúdo — mas um convite.
É nesse ambiente, em que a autoria se dissolve no coletivo, que o Entropia se estrutura como ecossistema. As ferramentas fornecidas — fichas preenchidas, NPCs prontos, guias de criação, aventuras modulares — não servem para padronizar, mas para desengessar.
É o oposto do fast-food lúdico. Não há build ótima. Não há metagame. O jogo quer ser difícil de dominar. Fácil de entender, sim. Mas resistente à otimização. Um espaço para cena, não para estatística.
A ausência de balanceamento sistêmico é proposital. A equipe tentou criar uma matriz, mas viu que “as fichas começaram a ficar iguais às de qualquer sistema que a gente queria evitar”. Desistiram. Preferiram o desequilíbrio simbólico.
Esse desequilíbrio, esse ruído, esse inacabamento, são os alicerces da proposta. São eles que tornam o Entropia mais que sistema — um campo de tensões narrativas. Um lugar onde as falhas contam. Onde a entropia explode. Onde o inesperado tem forma.
A decisão de manter o PDF gratuito e o sistema aberto, mesmo com o risco de não monetizar como se esperaria de um grande produto editorial, reflete essa visão.
O livro físico existirá, sim. Bonito, capa dura, para quem quiser apoiar. Mas nunca como barreira. Sempre como opção. O jogo, em sua essência, será sempre gratuito. Acesso não será privilégio. Será fundamento.
A monetização, quando vier, virá pelo valor agregado, não pelo conteúdo trancado. E isso diz muito sobre a editora que o publica. A D20 Culture prefere “errar com o que acredita” a continuar “acertando com algo que já não a representa”.
É esse tipo de decisão que transforma uma editora em comunidade. Um sistema em selo. Uma ficha em manifesto.
No fim, o Entropia não quer ser o fim de nada. Ele quer ser o começo de outro.
Ele nasce de uma urgência: salvar um formato narrativo. Mas cresce como proposta: refundar um modo de jogar. Ao tornar-se motor, deixa de ser fim e vira início. Ao abrir-se como SRD, transforma-se em convite. Ao rejeitar a neutralidade, transforma-se em voz.
E é essa voz que ouviremos no próximo capítulo — não mais pelos conceitos, mas pelas bocas que os disseram. A entrevista com Peterson Rodrigues e Lucas Conti aprofunda tudo o que aqui foi apenas esboçado: os bastidores das escolhas, os impasses de design, os conflitos internos, os erros assumidos e os gestos de fé.
Porque no Entropia, até o fracasso tem função. E toda ruína é fértil.
ENTREVISTA COM OS AUTORES | Vozes da Desobediência: Entropia e A Conversa Entre os Agentes do Caos
Quando dois autores resolveram explodir o RPG brasileiro de dentro pra fora
Uma entrevista em duas vozes. Um sistema em múltiplas escalas. “Entropia não é só um sistema. É um gesto. E, como todo gesto radical, pode virar explosão.”
Durante dois encontros intensos em Google Meet — o primeiro em conversa solo com Peterson Rodrigues, CEO da D20 Culture, e o segundo ao lado de Lucas Conti, autor de Mojubá RPG e outros títulos premiados — o Artifício RPG teve acesso às vísceras criativas de Entropia, um dos projetos mais ousados da cena nacional. Foram horas de conversa, provocações diretas, roteiros abertos e um único pedido: “abram tudo”.
Abrimos.
Nenhuma fala foi inventada. Cada resposta foi extraída com rigor das entrevistas originais: primeiro, a discussão sobre a proposta filosófica e comercial da D20 Culture com Peterson; depois, um mergulho conjunto no design narrativo, na estrutura simbólica e na lógica entrópica que dá nome ao sistema. O resultado se organiza em sete partes — como se cada uma fosse uma camada de entropia prestes a explodir.
Na primeira conversa, ainda num estágio embrionário do sistema, Peterson falou sobre burnout criativo, a frustração com licenças, o cansaço de adaptar sistemas estrangeiros e a necessidade de construir algo que fizesse sentido para o ritmo e a estética de suas mesas — principalmente em stream. Entropia, naquele ponto, era menos uma proposta e mais um grito.
No segundo encontro, falamos sobre quando Conti já havia se integrado oficialmente ao projeto. E o tom mudou. O caos ganhou forma. A teoria virou embate. A arquitetura do sistema emergia dos escombros. Conti trouxe a lente ritual, a precisão conceitual, a recusa à neutralidade. Peterson sustentava a urgência pragmática, o compromisso com o jogo que dá cena boa. O ruído virou ritmo.
As perguntas que disparamos não foram sobre regras. Foram sobre rachaduras. Sobre o mercado de RPG, o esgotamento da fórmula, o desejo por um sistema que dissesse algo — mesmo que isso custasse público, patrocínio, ou conforto. Não foi uma conversa de bastidores. Foi um acerto de contas com o futuro.
Porque o Entropia não nasceu para preencher lacunas. Nasceu para romper trilhos.
E como todo sistema fundado no risco, esta entrevista também se estrutura em camadas. Cada parte é um fragmento de processo. Um mapa provisório. Um retrato em construção de um jogo que não quer durar para sempre — mas quer ser, enquanto durar, inesquecível.
Começamos pelo início. O ponto de ruptura. O momento em que o D&D deixou de bastar — e a entropia, no sentido físico e narrativo, virou a única saída possível.
A Gênese do Caos
“Não era pra virar sistema. Mas a entropia já estava agindo.”
A entropia, dizem os físicos, é a tendência de todo sistema organizado ao colapso. Um impulso inevitável rumo ao desarranjo. Mas, no RPG, o caos pode virar criação. Pode ser motor. Pode ser estética. E, no caso do Entropia RPG, ele foi tudo isso — e mais.
A gênese do sistema não nasceu de brainstorm, nem de planilha editorial. Nasceu de frustração. De travamento real. De jogadores entediados, câmeras paradas, cenas que não fluíam. De um sistema que já não cabia no jogo que a D20 Culture queria produzir.
Peterson — “A gente jogava D&D 5e em stream, com produção cara, estúdio, câmera, elenco. E aí não rendia. O combate travava. Era impossível fazer com que a história avançasse em tempo de entretenimento. O público desligava. E os jogadores também.”
Era uma dor técnica, sim. Mas também estética. E, como toda dor que não se cala, virou ruptura.
Peterson — “Eu sou apaixonado por física. E por Nolan. Li o livro do Rovelli — A Ordem do Tempo — que fala de como a entropia é o que faz a gente perceber que o tempo existe. A ideia de que as coisas se desfazem. Que tudo caminha para o desarranjo. E pensei: é isso que acontece numa boa mesa de RPG. Quando a mesa funciona, é porque algo escapou do controle.”
A ideia de um sistema próprio ainda era rascunho. Mas o impulso criativo, esse, já tinha ultrapassado o ponto de não-retorno.
Essa filosofia — de que o dado é um agente narrativo, não apenas mecânico — redefiniu o tom do projeto. Se o D&D era uma grade de possibilidades, Entropia queria ser um campo de tensões.
Mas o primeiro passo não foi criar regras. Foi abandonar as antigas.
Peterson — “A gente já tinha tentado de tudo. Adaptação, house rule, homebrew, simplificação. Mas nada segurava uma campanha gravada com o ritmo que a gente precisava. Aí ficou claro que o problema não era o uso — era o sistema.”
E quando o sistema trava a história, é o próprio jogo que precisa ser reinventado.
A entropia começou como um conceito simbólico — o colapso como parte da experiência. Mas foi ganhando corpo. Ganhando intenção. Tornando-se design.
Peterson — “A própria entropia. No início, ela era mais ‘controle do mestre’. Tipo: ‘agora entra o caos’. Mas era artificial. Então a gente inverteu: o jogador consome entropia pra ganhar poder, e quando acumula demais, ela explode sozinha. Isso mudou tudo. Virou uma torre de Jenga. Você sabe que vai cair, só não sabe quando.”
A metáfora é precisa: o sistema foi projetado para ruir. Para que, num momento imprevisível, a estrutura colapse — e da ruína, surja a cena.
Peterson — “Esse é o ponto. O Entropia não é um sistema de controle. É um sistema de tensão. A entropia tá ali. Você usa. Você consome. Mas ela cobra.”
É nesse ponto que o sistema deixa de ser ferramenta e vira dramaturgia. O risco vira estética. A falha vira cena. O improviso vira design.
Mas a origem ainda estava cercada de dúvidas. E, como confessou o próprio Peterson, o medo era real.
Peterson — “No começo, eu fiquei com medo de ser um negócio nichado demais. De não ter público. Mas aí fui vendo que muita gente sentia o mesmo. Que queria algo mais livre. Mais fluido. E que não tivesse que ficar explicando D&D pra novato.”
Era também um gesto político. Um cansaço com a adaptação infinita. Uma vontade de começar do zero. De construir algo que não fosse tradução — mas proposição.
Peterson — “Eu não queria mais pedir desculpa por não usar D&D. Nem me justificar por adaptar tudo. Eu queria parar de adaptar. E começar a construir.”
É aí que a entropia deixa de ser só sistema. E vira movimento. Um manifesto de criação.
Um ponto de ruptura.
Artifício RPG — Houve um momento específico, um ponto de virada, em que a ideia de Entropia deixou de ser rascunho e virou salto no escuro?
Peterson — “Sim. Foi quando a gente estava escrevendo uma campanha nova, que tinha que ser filmada, roteirizada, jogável. E eu percebi que tudo travava no sistema antigo. Que eu tava escrevendo a história pra caber na ficha. Aí eu parei. E decidi: vou escrever a ficha pra caber na história.”
Esse gesto — quase de revolta íntima — foi o momento fundador. O nascimento da Entropia como ferramenta viva. Um sistema que não engessa a mesa, mas a escuta. Que não antecipa, mas responde. Que não dita, mas provoca.
Peterson — “O sistema antigo pedia disciplina. Esse aqui pede coragem.”
E coragem, no caso, era desenhar algo que abraçasse o colapso.
Peterson — “Entropia não é sobre controle. É sobre o que acontece quando você perde o controle.”
A gênese do sistema foi isso: uma desobediência mecânica. Um grito de design. Uma recusa a aceitar que o jogo precisa ser equilibrado para ser bom. Porque, às vezes, o desequilíbrio é que traz a cena memorável.
E se o sistema falhar?
Peterson já falou que “Se falhar, a gente rola o Dado de Entropia. E começa outra história.”
No fim, o nascimento do Entropia não foi um projeto. Foi uma implosão. Uma tentativa desesperada — e bem-sucedida — de fazer da ruína um gesto criativo.
Artifício RPG — Qual a ferida não cicatrizada no cenário de RPG que o Entropia se propôs a cauterizar?
Peterson — “A gente quer contar histórias onde a história seja protagonista. E não necessariamente o combo que você fez, ou a build que você fez, ou a inacessibilidade do sistema…Eu sempre fui muito resistente a como, o quanto dizer ‘esse é o jeito certo de jogar’. Se a história divertiu todo mundo à presente, ela foi uma boa história.
O Entropia se insurge contra a técnica como fim. Em vez de ser um jogo para resolver combates, ele deseja ser um jogo para precipitar narrativas. Seu antagonista simbólico é a obsessão pela build, pela meta, pela conversão de jogo em estatística. Essa inversão — de escrever a ficha a partir da história, e não o oposto — já seria subversiva o bastante num mercado onde muitos RPGs ainda funcionam como planilhas de Excel disfarçadas. Mas o que Peterson propõe é mais radical: é escrever com a certeza do colapso. É encarar a própria estrutura como combustível.
Entre o Produto e o Gesto
“A gente não queria um sistema neutro. A gente queria um sistema que dissesse algo.”
Se o caos fundou o Entropia, foi a recusa à neutralidade que lhe deu forma. O que começou como um projeto de sistema — funcional, enxuto, preparado para mesas reais —, rapidamente se revelou um gesto. Um posicionamento. Uma crítica velada (e às vezes nem tão velada) ao modo como o RPG tem sido consumido, produzido e adaptado no Brasil.
Peterson — “A gente cansou de adaptar D&D pra caber nas nossas ideias. Agora, a gente quer adaptar as nossas ideias pra caber num jogo que é nosso.”
Essa frase não surgiu como manifesto, mas como desabafo. E, como todo bom desabafo, carrega verdade bruta. Por anos, a D20 Culture construiu sua identidade em cima de adaptações criativas: campanhas ambientadas em sistemas consagrados, sobretudo o D&D 5ª Edição, transmitidas com produção de qualidade, elenco afiado, roteiros fortes. Mas havia uma fratura invisível. Um cansaço técnico e narrativo.
Peterson — “Era travado demais, rígido demais, técnico demais. E a gente começou a pensar: por que continuar usando algo que exige tanta adaptação, se podemos criar do zero?”
A resposta foi o Entropia. Não como reescrita do D&D. Mas como uma recusa dele. Um ponto de fuga. Uma tentativa de criar um RPG que já nascesse compatível com a forma de jogar, narrar e transmitir que a D20 queria cultivar.
Essa decisão, como confessado na entrevista, implicou um redirecionamento editorial profundo. Deixaram de lado localizações, interromperam traduções em andamento, reorganizaram equipes, recursos e estratégias.
Peterson — “Mudamos tudo. Deixamos de fazer localização. Cancelamos o que estava na fila. O objetivo era um só: criar IP própria. E o Entropia virou o motor dessa nova fase.”
Um motor que vai muito além da ficha. Que envolve mídia, revista, comunidade, presença digital, licenciamento. Um RPG que é também projeto de conteúdo, política editorial e arquitetura de negócios. Um sistema que não é só produto final — é também fundação para outros produtos.
Artifício RPG — Vocês estão criando um sistema que será, ao mesmo tempo, produto final e motor de licenciamento?
Peterson — “Sim. O Entropia é um sistema que vai ser usado em tudo. Ele não é só um livro. Ele é uma fundação. Uma estrutura que vai sustentar os nossos mundos — e os de outras pessoas.”
Conti — “Ele nasceu como sistema interno. Mas a gente entendeu que ele podia ser mais. Que ele devia ser mais. E que outras pessoas iam querer jogar nisso também. Então abrimos.”
E “abrir”, aqui, significa literalidade: PDF gratuito, SRD pública, incentivo à criação de material derivado por outros autores e jogadores. Um gesto raro num mercado ainda dominado por sistemas fechados, licenças ambíguas e contenções corporativas.
Peterson — “Eu fui uma criança pobre. O 3D&T mudou minha vida. Porque era acessível. Era barato. Era divertido. Era livre. O Entropia quer ser isso também. A gente vai lançar o PDF de graça. Vai abrir a SRD. E vai incentivar que as pessoas criem com o sistema.”
Essa abertura tem dois lados. O digital — acessível, rápido, comunitário —, e o físico — objeto bonito, colecionável, digno de prateleira. Ambos têm espaço no projeto.
Conti — “Vai ter sim. Mas vai ser opcional. Bonito. Capa dura. Pra quem quiser apoiar o projeto. A ideia é que o conteúdo esteja acessível pra todo mundo — mas que quem quiser ter o livro, o objeto, a experiência física, possa ter também.”
Esse modelo híbrido — gratuito e premium — foi viabilizado graças à base consolidada de leitores e apoiadores que a D20 já vinha cultivando com sua revista digital, a D20 Saga, hoje com mais de quatro mil assinantes ativos.
Peterson — “Quem for assinante do D20 Saga vai receber o PDF antes. Vai poder participar do playtest. Vai ajudar a moldar o sistema. A gente quer que a comunidade participe da construção.”
Conti — “O sistema só vai ficar pronto depois que a galera jogar. Depois que a entropia acontecer na prática.”
E esse convite à experimentação não é só narrativa. É estratégica. O Entropia está sendo oferecido como sistema, mas também como linguagem. E como todo idioma novo, exige reaprendizado.
Artifício RPG — Essa abertura toda tem risco. E se o público não entender? E se der errado?
Peterson — “A gente está acostumado com risco. Sempre foi assim. Mas o risco agora vale a pena. Porque é um risco criativo. É melhor errar com o que a gente acredita do que continuar acertando com algo que já não nos representa.”
Conti — “E se der errado, a gente rola o Dado de Entropia. E vê o que acontece depois da explosão.”
Essa autoironia recorrente — “rola o Dado de Entropia” virou quase bordão entre os dois — não é fuga. É convicção. Eles sabem que criaram algo que provoca. Que exige postura. Que não será digestível para todos.
Conti — “Tem gente que vai amar. Tem gente que vai estranhar. E tem gente que vai odiar. Isso faz parte. Mas o que a gente não queria era um sistema neutro. Um sistema que agradasse todo mundo e não dissesse nada.”
E o Entropia diz. Diz muito. Diz, por exemplo, que a ficha deve ser simples, mas o drama profundo. Que o caos pode ser estrutura. Que o jogador deve criar, não só executar. Que o RPG não é uma fórmula. É uma faísca.
Peterson — “Não quero mais traduzir sistema americano. Quero que eles traduzam o nosso.”
Conti — “O Entropia é nossa voz. Não só mecânica. Mas estética. Cultural. Filosófica.”
Essa ideia — de um sistema que seja também estética, que fale algo, que tenha sotaque — é talvez o gesto mais político de toda a empreitada. Um RPG que não busca replicar o que funciona lá fora, mas criar o que é necessário aqui dentro.
E isso, como bem sintetiza Peterson, não é uma aposta. É um caminho sem volta.
Peterson — “A gente não quer depender de ninguém. Nem de sistema, nem de IP, nem de mercado. Queremos criar. E abrir caminho pra outros criarem também.”.
A Chegada de Lucas Conti
“Ele pegou o rascunho, leu tudo, e voltou com vinte anotações. Eu entendi na hora: esse cara não ia só revisar. Ia criar.”
Há encontros que parecem acasos. E há encontros que têm o gosto de destino. A chegada de Lucas Conti ao projeto Entropia não foi feita de reuniões formais, convites corporativos ou planilhas de planejamento. Foi feita de olho no olho. De intuição. De ouvir uma fala e perceber que ali estava alguém que falava o mesmo idioma — mesmo que esse idioma ainda estivesse por ser inventado.
Peterson — “Foi no Diversão Offline. Eu já conhecia o trabalho do Conti. Já tinha lido Mojubá. Mas quando vi ele falando sobre design, sobre criação simbólica, entendi que era outra pegada. Não era um designer só de mecânica. Era um cara que pensava RPG como gesto.”
O cenário era o maior evento de jogos de mesa do Brasil. A D20 Culture já trabalhava internamente no que viria a ser o Entropia, mas o sistema ainda respirava como esboço. Um amontoado de vontades e premissas. Faltava amálgama. Faltava alquimia. E foi no corredor do evento, entre trocas rápidas e café morno, que a fagulha do caos encontrou sua primeira estrutura.
Conti — “A gente se trombou no DOF, conversou, e depois ele me mandou um documento com o rascunho do Entropia. Ele já estava trabalhando nisso. Quando eu vi, pensei: isso pode ser uma fundação. Um motor.”
O “documento” em questão era um pré-alfa: ideias espalhadas, mecânicas soltas, conceitos embrionários. Mas, para Conti, o potencial era claro. O caos tinha identidade. O sistema era imperfeito, mas pulsava. E, mais do que tudo, havia ali um desejo: o de romper com os trilhos.
Conti — “No começo, o Entropia era muito centrado no mestre. A entropia era controlada por ele. Eu disse: isso mata o caos. Isso tira o poder da mesa. Então propus a inversão: deixar o jogador escolher usar a entropia. Mas quando ela se acumula, ela explode. Sem aviso. Isso dá medo. E o medo dá jogo.”
Essa foi a primeira intervenção de Conti — e uma das mais simbólicas. A mecânica da entropia deixou de ser um botão de mestre e virou um relógio narrativo. A agência do jogador aumentou. O risco virou dramaturgia. E o colapso se tornou inevitável.
Peterson — “Isso foi ideia do Conti. E mudou tudo. A gente testou em stream, e os jogadores começaram a jogar diferente. Com mais intenção. Mais atenção. Porque sabiam que a história podia virar a qualquer momento.”
A mecânica virou linguagem. O jogo começou a se comportar como um organismo vivo. E a parceria, que até então era só teste, se consolidou como coautoria. Não houve contrato. Houve confiança.
Peterson — “Eu dei o rascunho pra ele e, uma semana depois, ele me voltou com um dossiê. Tinha página rabiscada, setinha, anotação, contradição, sugestão. Eu entendi ali: ele não veio pra revisar. Veio pra reconstruir.”
Conti — “Eu não quis mudar tudo. Só quis fazer com que as ideias do Peterson conversassem entre si. Ele tinha ouro ali. Só precisava derreter e moldar.”
Esse processo de alquimia mecânica não foi apenas técnico. Foi simbólico. E teve, como base, o histórico de Conti como autor de jogos que tratam o RPG não como passatempo, mas como ferramenta ritual.
Mojubá RPG, por exemplo, não usa ficha tradicional. Não trabalha com pontos de vida ou dano. Sua estrutura é centrada em legado, arquétipo e ancestralidade. O jogo, vencedor do Prêmio Ludopedia 2023 como melhor RPG nacional, parte da cultura afro-brasileira para construir uma proposta de protagonismo simbólico, onde cada ação carrega memória.
Conti — “No Mojubá, o jogo é um ritual. Não tem ficha com PV, não tem rolagem por dano. Tem memória, tem símbolo, tem herança. A estrutura não é quantitativa. É qualitativa. Isso muda tudo.”
Além do Mojubá, Conti já havia lançado Lanceiros, uma proposta de resistência política lúdica, e Egrégora, um experimento coletivo que flerta com performance e espiritualidade. Todos esses jogos partem de uma premissa comum: RPG como espaço de encenação simbólica. Como espaço de cura, de disputa e de potência.
Artifício RPG — Como esse tipo de estrutura se relaciona com o Entropia, que é mais voltado para ação e combate estratégico?
Conti — “A estrutura muda, mas a lógica é parecida. Nos dois casos, o sistema é uma extensão da ideia. Em Mojubá, o foco é o legado. Em Entropia, é o caos criativo. Em um, o jogador acessa o passado. No outro, projeta o futuro. Mas os dois exigem coragem. Exigem escolha. Exigem autoria.”
Foi essa lente — ética, simbólica, estética — que Conti trouxe ao projeto. E o efeito foi imediato. O Entropia deixou de ser só um sistema rápido. Passou a ser também um sistema vivo. Onde a ficha é ensaio, e a jogada, um gesto dramático.
Conti — “O RPG é um lugar de criação simbólica. Seja você jogando num castelo medieval ou numa favela cyberpunk, o que importa é o que está sendo dramatizado. Qual dor está sendo encenada. Qual potência está sendo ativada. A ficha é só o primeiro rascunho do personagem real.”
Peterson — “Eu nunca tinha pensado assim. E é isso que é massa da parceria. A gente aprende junto.”
Essa troca é visível em cada canto do Entropia. Do uso dos PAx (Pontos de Ascensão) às escalas narrativas. Dos Traços únicos às Técnicas de Luta improvisadas. Das falhas críticas à mecânica de colapso. Tudo carrega, ao mesmo tempo, a urgência da stream e a filosofia do símbolo.
Artifício RPG — O que o Mojubá ensinou pro Entropia?
Conti — “Que sistema é linguagem. Que não existe ‘neutralidade mecânica’. Tudo que você bota numa ficha diz algo sobre o mundo. O que você tira também. No Mojubá, eu tirei a ficha tradicional. No Entropia, tirei o atributo social. Nos dois casos, a pergunta é a mesma: o que a ausência diz?… Eu queria uma vibe mais brasileirona, tá ligado? Mas pegar ônibus, pegar trem lotado. Essas paradas. O Mörk Borg influenciou no sentido estético. Mas o Mojubá é uma carta de amor à vida real.”
Peterson — “E o que ela cria. Porque quando você tira o dado de diplomacia, o jogador precisa falar. Precisa se expor. A entropia entra aí também. Porque toda escolha é risco. Até as palavras.”
Esse tipo de pensamento — mais próximo de um laboratório de dramaturgia do que de uma escola de build — é o que dá ao Entropia sua cara. Um sistema que não quer ser o novo genérico brasileiro. Mas quer ser algo que só pode ser feito aqui.
Peterson — “O Entropia virou uma parceria. Eu botei o impulso. O Conti botou a forma. E a equipe da D20 transformou tudo em projeto real. Cada um teve um papel. Mas sem ele, não seria o mesmo jogo.”
Conti — “E sem o Peterson, não teria jogo nenhum. Porque ele foi o primeiro a acreditar. A arriscar. A largar o seguro pra criar o novo.”
A honestidade dessas falas não é ensaiada. É vivida. Eles não estão performando protagonismo. Estão dividindo a autoria de um sistema que, desde o começo, foi pensado como coletivo. E esse gesto — de abrir mão do controle, de jogar o Dado de Entropia — é talvez o verdadeiro segredo do Entropia.
Quando o Caos Vira Design
“Não é só falha. É falha que muda tudo. É entropia. É risco. É cena que só existe porque o controle escapou.”
Quando se fala em design de RPG, a maioria das pessoas pensa em tabelas, equilíbrio, matemática. Regras que garantam justiça, consistência, segurança. O Entropia, por outro lado, é um sistema que parece projetado para fazer o oposto — e isso não é defeito, é intenção. A ideia de que o jogo precisa funcionar a partir da desordem, do risco, da explosão de expectativa, é o que molda cada engrenagem. Para os criadores, isso não é apenas provocação estética: é posicionamento político.
A mecânica da entropia, central no sistema, não é uma metáfora poética: é real. Existe uma barra — o Dado de Entropia — que acumula conforme o jogador faz ações ousadas, intensas, simbólicas. Quanto mais se gasta a entropia, mais se aproxima da explosão. E quando ela explode, algo acontece. Algo que ninguém controla.
Conti — “A entropia, pra mim, é o momento em que o mestre deixa de saber o que vai acontecer. Em que o jogador faz algo que muda tudo. Em que a história deixa de ser uma linha reta. Ela vira uma espiral. Uma falha bonita.”
É nesse ponto que o Entropia se separa de quase todos os sistemas atuais em circulação. Ele não é sobre rolar bem. É sobre o que você faz com a rolagem. Sobre como transforma um 1 em dramaturgia. Sobre como converte uma consequência em narrativa. E essa visão, radicalmente centrada no imprevisível, gerou uma série de decisões de design que parecem absurdas à primeira vista.
Artifício RPG — Vocês removeram o atributo social. Isso não é quase heresia?
Conti — “Isso foi polêmico. A gente abraçou muitos jogos que a gente admira: 4ª edição, Dungeon World, Fate. Até Defensores de Tóquio. Tentamos trazer o que tem de melhor. Muita gente achou que era ‘tirar uma parte essencial do RPG’. Mas o RPG é interpretação. Se você quer convencer, convença. O dado ajuda, mas a fala tem que vir do jogador.”
Peterson — “Quer dançar? Faça sua dancinha. Quer convencer alguém? Argumente. O RPG é uma conversa com dados, não dados com frases.”
A ausência de um atributo tão comum quanto “Carisma” ou “Persuasão” é, aqui, um recado. O sistema está dizendo: o foco não é simular a realidade, é produzir linguagem. Não é representar o personagem com estatísticas — é tornar a interpretação o centro da ação.
E não para por aí. Não há classes. Não há níveis fixos. Não há XP. O crescimento do personagem se dá por PAx — Pontos de Ascensão — que o jogador recebe conforme protagoniza eventos dramáticos, cenas memoráveis, decisões corajosas. Não é “matar três monstros” que garante evolução. É “fazer algo que transformou a história”.
Conti — “A gente queria que subir de nível significasse algo. Não ser uma tabela automática. Quer ganhar PAx? Faça algo memorável. Tenha coragem. Assuma o risco.”
Essa coragem, aliás, é exigida do jogador a todo momento. Criar uma ficha em Entropia é um ato de dramaturgia. Não se trata de escolher talentos e atributos de forma eficiente. Trata-se de criar um personagem que seja único. Que tenha um Traço — e que esse Traço diga algo. Que tenha Técnicas — e que elas criem cena.
Peterson — “A gente não quer que o jogador se pergunte ‘o que posso fazer?’ — mas ‘o que quero causar?’. O personagem não é só um conjunto de estatísticas. Ele é uma tese viva.”
Artifício RPG — Mas como evitar que essa liberdade não paralise? Que o jogador não trave?
Peterson — “Com estrutura. A gente entrega encontros prontos, aventuras com sandbox guiado, exemplos de arquétipos, fichas de criaturas. Quem quiser usar o Entropia como sistema tradicional, vai conseguir. Mas ele tem espaço pra muito mais.”
Conti — “E com filosofia de design. A ficha é simples de fazer. O desafio está nas consequências narrativas. Não em saber combinar feat com rolagem.”
Um bom exemplo disso são os Traços. Eles funcionam como “marcas” do personagem — podem ser poderes, maldições, vínculos, objetos, pactos, histórias passadas. Eles afetam a mecânica do jogo, sim, mas de maneira única. Cada Traço é exclusivo. E, por isso, intransferível. Não é algo que se copia. É algo que se cria.
Conti — “O Traço é a parte mais pessoal da ficha. É onde o jogador deixa a marca. Aquele detalhe que, quando alguém ouvir, vai dizer: ‘esse é o seu personagem’.”
Peterson — “É o diferencial. A parte que não dá pra copiar. Porque é única.”
Essa aposta no singular, no irrepetível, é a alma do sistema. E é o que o torna não só desafiador, mas também profundamente libertador. Porque ele pede que o jogador não pense só em vencer. Pense em viver.
Conti — “É um sistema para quem quer contar história. Para quem quer viver a história. Não só vencê-la.”
Essa recusa à lógica do “build ideal” faz com que Entropia seja, na prática, um sistema incompatível com fórmulas. É possível criar combos, claro. Mas não com tabelas. Com intuição. Com escolha. Com gesto.
Peterson — “Sim. Mas o sistema também entrega o combo. Só que não como ponto de chegada, e sim como consequência. Você pode fazer um personagem otimizadíssimo. Mas pra isso, tem que pensar como autor. Não como engenheiro.”
Conti — “Tem combo, tem build, tem sinergia. Mas tudo isso vem de escolhas criativas. Não de fórmulas replicadas.”
Há, aqui, uma crítica sutil aos sistemas que prometem liberdade mas entregam eficiência. Que encorajam criação, mas recompensam repetição. O Entropia, ao contrário, quer premiar a originalidade. Quer fazer da ficha uma semente, não um gabarito.
E essa postura se traduz até nas aventuras oficiais. Ao invés de dungeons tradicionais, o sistema oferece estruturas de sandbox com gatilhos narrativos, eventos imprevisíveis, e caos programado.
Artifício RPG — Qual o papel da aventura pronta no Entropia?
Peterson — “Elas mostram como o sistema pode colapsar com estilo. São roteiros abertos. Nada é linear. O mestre recebe ideias, mas quem escreve a história é a mesa.”
Esse foco na mesa como autora, e não apenas executora, é um dos pontos de ruptura mais fortes do Entropia com o modelo tradicional. A ficha, aqui, não dita o jogo. Ela responde a ele. E o dado — esse velho vilão de tantas campanhas frustradas — se torna personagem.
Conti — “O sistema não é sobre vitória. É sobre consequência. A entropia transforma cada jogada em algo que pode mudar tudo.”
Peterson — “Às vezes, o maior sucesso é um fracasso bem interpretado.”
E é esse fracasso, essa falha que se recusa a ser descartada, que move o jogo. Em Entropia, o erro é motor. A incerteza é mecânica. A dúvida é combustível.
Conti — “A entropia é estrutura. É risco. Você usa, você ganha poder, mas uma hora ela explode. E quando explode, ninguém controla.”
Artifício RPG — Qual foi a decisão de design mais polêmica do Entropia?
Conti — “No começo, o mestre tinha o domínio de quando ele podia jogar o Dado de Entropia. E nele tinha coisas boas e coisas ruins. Mas a gente decidiu que a Entropia tinha que fugir até mesmo do controle do mestre. Porque ninguém controla ela… Hoje ela é como uma torre de Jenga. Uma hora vai desmoronar.”
O caos virou design. A falha virou linguagem. A mesa virou palco. E a ficha, finalmente, virou um rascunho vivo.
Artifício RPG — Houve mecânicas que pareciam promissoras, mas fracassaram?
Peterson — “A Entropia mudou completamente. No começo ela estava ali como um bônus aleatório. Tipo a feitiçaria selvagem do Feiticeiro do D&D, mas um pouco mais contido.”
Conti — “Ela não tinha ainda essa potência de virar tudo de cabeça pra baixo. A gente precisou encontrar essa forma de deixar ela apimentada, perigosa, imprevisível.”
A Ficha como Ensaio
“Você pode fazer um personagem otimizadíssimo. Mas pra isso, tem que pensar como autor. Não como engenheiro.”
Antes de qualquer dado ser rolado, antes mesmo da primeira cena ser narrada, há um ritual silencioso que define todo o rumo do jogo: a criação da ficha. Em Entropia, esse momento não é técnico. É simbólico. É o ensaio geral daquilo que virá — e do que pode vir a ruir.
Em quase todos os RPGs tradicionais, a ficha é uma ferramenta de controle. Ela serve para organizar dados, mensurar capacidades, calcular limites. Em Entropia, não. Aqui, a ficha é uma promessa dramática. Um pedaço de teatro congelado que será descongelado aos poucos, conforme o caos narrativo for se impondo.
Artifício RPG — O que muda, então, na forma de fazer ficha em Entropia? Como é esse processo?
Conti — “A ficha não é um obstáculo. O desafio está nas consequências narrativas. Não em saber combinar feat com rolagem.”
Peterson — “A gente não quer que o jogador se pergunte ‘o que posso fazer?’ — mas ‘o que quero causar?’. O personagem não é só um conjunto de estatísticas. Ele é uma tese viva.”
Essa ideia de que a ficha carrega uma tese — um gesto narrativo condensado — muda completamente a forma como se começa o jogo. Em vez de escolher uma classe, o jogador começa com perguntas: quem é essa pessoa? O que a move? Qual será seu ponto de ruptura?
Não há classes. Não há arquétipos fixos. Mas há, sim, estrutura. O personagem é composto por seis atributos (Poder, Precisão, Agilidade, Resistência, Espírito e Mente), por Técnicas de Luta que o definem em ação, por Traços que lhe conferem identidade simbólica, e por um recurso chamado Entropia — uma barra de caos pessoal que cresce à medida que se tenta fazer mais do que se deveria.
Conti — “A entropia não é só uma palavra bonita. É estrutura. É risco. Você usa, você ganha poder, mas uma hora ela explode. E quando explode, ninguém controla.”
Peterson — “A própria entropia. No início, ela era mais ‘controle do mestre’. Tipo: ‘agora entra o caos’. Mas era artificial. Então a gente inverteu: o jogador consome entropia pra ganhar poder, e quando acumula demais, ela explode sozinha. Isso mudou tudo. Virou uma torre de Jenga. Você sabe que vai cair, só não sabe quando.”
Esse paralelo com a torre de Jenga diz tudo. O sistema foi desenhado para desestabilizar. Para fazer com que cada ação relevante tenha um peso acumulativo. A ficha, então, deixa de ser um rol de habilidades — e passa a ser um balé tenso entre desejo e risco.
Artifício RPG — Mas o que define uma boa ficha, então? O que o sistema espera do jogador?
Conti — “O Traço é a parte mais pessoal da ficha. É onde o jogador deixa a marca. Aquele detalhe que, quando alguém ouvir, vai dizer: ‘esse é o seu personagem’.”
O Traço é mais do que um poder ou uma habilidade especial. Pode ser uma maldição, uma herança, um pacto, um objeto que fala, um segredo guardado. Pode ser mecânico, claro — dar vantagem, ativar efeitos, permitir rolagens únicas. Mas seu papel principal é dramático: ele muda a história. Ele força decisões. Ele revela identidade.
Peterson — “É o diferencial. A parte que não dá pra copiar. Porque é única.”
É esse compromisso com o singular que define a filosofia de criação em Entropia. Cada ficha é irrepetível não porque tem combinações únicas, mas porque carrega intenções únicas. É uma construção que exige autoria.
Conti — “É um sistema para quem quer contar história. Para quem quer viver a história. Não só vencê-la.”
Peterson — “Às vezes, vencer é continuar jogando. Às vezes, o maior sucesso é um fracasso bem interpretado.”
Não é figura de linguagem. É regra de design. O dado pode mudar tudo. O Dado de Entropia, especificamente, é um tipo especial de rolagem que ocorre quando a barra explode. Ele representa o momento de colapso narrativo. E não é apenas o jogador que é pego de surpresa. O mestre também.
Conti — “A entropia pega todo mundo. Ela é uma falha que obriga a improvisar. Ela não respeita planejamento. E é aí que o jogo fica bom.”
Essa ideia — de que o caos é coautor — talvez seja o ponto mais radical do sistema. O Entropia não só permite o inesperado. Ele o convoca. E faz da ficha o primeiro campo de ensaio para que isso aconteça.
Não é fácil. Muitos jogadores, acostumados à segurança de progressões numéricas, builds otimizadas e caminhos predefinidos, se assustam com o grau de liberdade.
Artifício RPG — Como garantir que isso não trave o jogo? Que essa liberdade não vire paralisia?
Peterson — “Com estrutura. A gente entrega encontros prontos, aventuras com sandbox guiado, exemplos de arquétipos, fichas de criaturas. Quem quiser usar o Entropia como sistema tradicional, vai conseguir. Mas ele tem espaço pra muito mais.”
Conti — “A ficha é simples de fazer. O desafio está nas consequências narrativas. Não em saber combinar feat com rolagem.”
Na prática, o que se oferece é uma estrutura maleável. Há caminhos sugeridos, sim. Há arquétipos. Há técnicas. Mas tudo isso funciona como combustível, não como grade. O jogador recebe ferramentas. E com elas, constrói o próprio caminho.
Conti — “Tem combo, tem build, tem sinergia. Mas tudo isso vem de escolhas criativas. Não de fórmulas replicadas.”
É por isso que o Entropia não exclui os jogadores mais técnicos. Ele apenas os desafia a pensar diferente. A otimizar com base em símbolo, não só em número. A fazer da ficha um ensaio — e não uma planilha.
Artifício RPG — Vocês acham que o público brasileiro está pronto pra isso? Que vai conseguir lidar com esse grau de autoria?
Conti — “Alguns vão amar. Outros vão estranhar. E tudo bem. A gente não quer ser o novo sistema universal. A gente quer ser uma alternativa. Uma proposta. Algo que provoque. Que traga novas formas de jogar.”
Peterson — “A ficha é só o começo. O resto vem da mesa. E a gente confia na mesa.”
O Entropia, nesse sentido, é um sistema que exige — mas também devolve. Ele cobra criatividade, mas oferece liberdade. Ele cobra coragem, mas oferece surpresa. Ele cobra autoria, mas oferece memória.
E tudo isso começa na ficha.
A Mesa como Prova de Fogo
“O sistema só vai ficar pronto depois que a galera jogar. Depois que a entropia acontecer na prática.”
Criar um sistema é uma coisa. Testá-lo sob o peso do improviso, da pressa, do público e da expectativa — é outra completamente diferente. Entropia nasceu da vontade de reagir ao engessamento dos sistemas clássicos, mas sua verdadeira prova veio quando foi colocado diante daquilo que nenhum manual é capaz de prever: o jogador brasileiro.
Peterson — “O sistema foi pensado pra ser acessível. A ficha é simples. Os dados são comuns. Não tem cálculo difícil. A curva de aprendizado está na narrativa. E isso é bom. Porque forma jogador.”
Mas o que significa “formar jogador”? Para os criadores do Entropia, isso não tem a ver com decorar regras, nem com memorizar builds ou se especializar em combos matematicamente perfeitos. Tem a ver com desenvolver um novo tipo de escuta. Um jeito de jogar que valoriza o caos tanto quanto a estrutura.
Artifício RPG — Como foi o processo de playtest? Houve surpresas?
Conti — “O sistema roda. A gente testou em mesa, em stream, em evento. Ele aguenta. Mas o melhor é ver como os jogadores reagem. Teve uma vez que um jogador usou entropia e o dado explodiu a cena. O vilão virou pai dele. Isso mudou tudo.”
É aí que está o nervo do Entropia. A mesa é o palco do colapso. E cada sessão é um risco calculado — ou nem tão calculado assim. Os criadores sabiam disso desde o início. Por isso, decidiram expor o jogo ao público de forma direta, sem intermediações, sem promessas absolutas.
Peterson — “Quem for assinante do D20 Saga vai receber o PDF antes. Vai poder participar do playtest. Vai ajudar a moldar o sistema. A gente quer que a comunidade participe da construção.”
Isso é mais do que marketing. É parte da filosofia do jogo. A entropia, enquanto conceito, não é apenas uma mecânica. É também um princípio editorial. Um método de produção. Um pacto de risco.
Artifício RPG — E o risco do público não entender? Não comprar a proposta?
Peterson — “A gente está acostumado com risco. Sempre foi assim. Mas o risco agora vale a pena. Porque é um risco criativo. É melhor errar com o que a gente acredita do que continuar acertando com algo que já não nos representa.”
Conti — “E se der errado, a gente rola o Dado de Entropia. E vê o que acontece depois da explosão.”
Essa resposta, que aparece mais de uma vez ao longo da entrevista, virou uma espécie de refrão filosófico do projeto. Ela carrega algo de autoironia, claro. Mas também uma firmeza rara. Eles sabem o que estão fazendo. Sabem o tipo de jogo que criaram. E estão preparados para os efeitos colaterais.
Mas nem tudo foi recepção calorosa. Em diversas comunidades, fóruns e redes sociais, surgiram dúvidas sobre a viabilidade de um sistema que rompe com tantos elementos estruturais clássicos: sem classes, sem XP, sem atributo social, com uma progressão qualitativa e com foco em improviso.
Artifício RPG — Vocês não acham que isso pode assustar? Que jogadores mais tradicionais podem travar diante de tanta liberdade?
Conti — “É normal. A gente sabia que isso ia acontecer. Quando você tira as classes, os níveis fixos, os caminhos prontos, o jogador sente um vazio. Mas esse vazio é fértil. É nele que você planta o personagem.”
Peterson — “É como sair do trilho do trem e perceber que tem uma floresta inteira pra explorar. No começo, dá medo. Mas depois vira descoberta.”
Para facilitar esse salto, a equipe da D20 Culture preparou uma série de ferramentas: fichas preenchidas, aventuras prontas, guias de criação, tutoriais em vídeo, NPCs customizáveis. Tudo com o objetivo de manter o sistema acessível — sem comprometer sua profundidade.
Conti — “A gente está entregando tudo com exemplo. Com aventura pronta. Com guia de criação. A ideia é que, se você sentar pra jogar, consegue em 10 minutos. E se quiser se aprofundar, consegue por meses.”
Mas o teste final não está nas planilhas. Está na cena.
Peterson — “O Entropia funciona em stream. Em mesa rápida. Em uma sessão de 3 horas. Ele foi feito pra isso. Pra dar jogo. Pra dar cena boa. Pra não travar o ritmo.”
A preocupação com ritmo não é um detalhe. Ela está no DNA do sistema. Ele foi projetado, desde o início, para funcionar bem em ambientes como mesas online, sessões gravadas, campanhas híbridas. Isso tem a ver com o próprio nascimento do sistema — que surgiu, como revelado anteriormente, de uma frustração com os travamentos do D&D em sessões de stream.
Mas agora, com o sistema em mãos, é o público que decide. E o público, curiosamente, não é tão pequeno quanto se imaginava. A D20 Culture já conta com mais de 4 mil assinantes ativos, e o Entropia apareceu em portais como IGN Brasil, MSN, e em fóruns diversos no Discord e no Twitter. Há movimento. Há olhos. Há mesas.
Peterson — “Tem muita gente perguntando. Querendo saber. Testando em casa. Jogando one-shots. A entropia já começou a agir nas mesas. E isso é lindo.”
O verbo aqui não é à toa: agir. A entropia age. Ela não espera. Não pergunta. Ela acontece. E por isso, cada mesa de Entropia é um experimento.
Conti — “É isso que valida o sistema. Quando o jogador diz: ‘cara, minha ficha ficou maneira’. Ou: ‘a cena de hoje foi inesquecível’. Aí a gente sabe que o jogo cumpriu o papel.”
Artifício RPG — Mas o que define, pra vocês, uma boa sessão de Entropia?
Peterson — “Uma boa sessão é aquela em que algo inesperado acontece. Em que a história muda por causa do dado. Em que o mestre também é surpreendido. Quando o dado vira o sexto jogador — e todo mundo ouve o que ele tem a dizer.”
Essa imagem — o dado como sexto jogador — é talvez a melhor definição do Entropia em ação. Não se trata apenas de um sistema. Trata-se de um novo modo de relação com a imprevisibilidade.
Conti — “A entropia pega todo mundo. Ela não respeita hierarquia. Nem planejamento. Ela exige escuta.”
Nesse ponto, Entropia se aproxima de uma proposta mais teatral do que matemática. Mais simbólica do que sistemática. A improvisação não é um recurso de última hora — ela é o coração do sistema. E é por isso que a mesa se torna o lugar de prova.
Quando foi falado “A gente fez o sistema. Agora é o público que vai fazer o jogo.”, deixa claro a parte mais visceral da proposta. O Entropia não está completo. E talvez nunca esteja. Ele é, por definição, um organismo instável. Um motor que só roda em movimento.
Artifício RPG — Qual foi o momento mais caótico em uma mesa de Entropia?
Peterson — “A entropia, quando você vai acumulando, seu jogo fica mais caótico. As coisas ficam mais randômicas. Que dependam mais do dado. Que o dado tome um protagonismo…Tem histórias incríveis aqui gravadas, de situações em que o dado mudou completamente o que a gente tava pensando. Situações da Thaís, da Isabela… que se você contar pra uma pessoa de fora, é surreal.”
Conti — “Você rodou o Dado de Entropia, deu 13. E aí o vilão não era quem você pensava. A princesa tava em outro castelo. Todo mundo é surpreendido na mesa. Tem que lidar com o caos.”
E o movimento — como sempre — começa na mesa.
O Futuro e o Incêndio
“A gente não tá criando um D&D brasileiro. A gente tá criando um jeito brasileiro de jogar RPG.”
Poucos RPGs autorais nascem com tamanha ambição e autocrítica. E menos ainda sobrevivem à própria expectativa. O Entropia, sistema criado por Peterson Rodrigues e co-desenvolvido por Lucas Conti, parece saber disso desde o início. É um jogo que já nasce com uma corda no pescoço — e com um fósforo aceso na mão.
Peterson — “Não quero que o Entropia seja um ‘produto de verão’. Quero que ele seja uma ferramenta. Um sistema que as pessoas usem para contar histórias por anos.”
Mas e se não durar? E se não encontrar mesa, voz, comunidade? A resposta dos autores não é corporativa. Não há jargões de resiliência ou promessas messiânicas de expansão. O que há é uma visão crítica — e um gesto incendiário.
Conti — “Se der errado, a gente rola o Dado de Entropia. E começa outra história.”
A metáfora, que se repetiu como mantra ao longo de toda a entrevista, não é apenas retórica. Ela é mecânica, política e editorial. Ela sintetiza o que significa trabalhar com risco simbólico em um mercado ainda engessado por traduções, fórmulas e lógicas industriais.
Peterson — “Eu não queria mais pedir desculpa por não usar D&D. Nem me justificar por adaptar tudo. Eu queria parar de adaptar. E começar a construir.”
A construção de que falam não é só estrutural. É cultural. Ao abrir mão de elementos considerados centrais — como classes, XP tradicional, atributo social, progressão numérica, lore fechado — o Entropia não está apenas criando um sistema. Está propondo outra epistemologia lúdica. Um novo modo de pensar o jogo como dramaturgia em tempo real.
Artifício RPG — O que vem depois do lançamento? Qual é o plano para que Entropia continue vivo?
Peterson — “A gente vai lançar uma SRD. Vamos deixar claro o que pode ser usado, como pode ser creditado, e incentivar a comunidade a criar. O Entropia é nosso — mas é de todo mundo também.”
A SRD (System Reference Document) será lançada com permissão aberta para que qualquer pessoa — amador, autor, editora ou coletivo — possa criar suplementos, aventuras, cenários, hacks e até novos sistemas derivados do motor do Entropia. Trata-se de um gesto incomum no Brasil, onde ainda predomina a lógica do controle editorial e das licenças ambíguas.
Conti — “Quero que as pessoas escrevam outros jogos com base no Entropia. Que ele vire motor, não produto. Que seja como um tambor de escola de samba: cada um toca de um jeito, mas o ritmo é coletivo.”
Essa imagem sintetiza bem o futuro pretendido pelo projeto: não o domínio de um sistema único, mas o florescimento de vozes diversas. O Entropia não quer substituir nada. Quer proliferar. Quer descentralizar. Quer criar ruído. Ruído criativo.
Peterson — “Quero que o jogador possa dizer: ‘isso aqui é meu’. Que ele crie um Traço que nunca existiu. Que invente uma Técnica de Luta que não tá no livro. Que mude a história porque rolou um 1 no Dado de Entropia e, de repente, o vilão virou aliado. Isso é RPG pra mim.”
A resposta não fala apenas do sistema — fala de uma ética. E é nessa ética que repousa o futuro do Entropia: o compromisso com uma jogabilidade viva, imperfeita, reativa. Um jogo que não quer ser lembrado pela perfeição das estatísticas, mas pela potência das cenas.
Conti — “Milagre é só entropia em câmera lenta.”
Frase dita com um sorriso, mas com o peso de quem sabe o tamanho da aposta. Um sistema assim só sobrevive se for jogado. E para ser jogado, precisa ser entendido — não no sentido técnico, mas simbólico. Por isso, o foco da próxima etapa está na criação de ferramentas didáticas.
Peterson — “Vai ter ficha pronta, aventura pronta, guia rápido. A gente quer que o jogador possa jogar com pouco tempo. E que o mestre não precise ser especialista. O sistema é profundo, mas ele escala com o grupo.”
A ideia de “escalar com o grupo” é central no que eles chamam de filosofia adaptativa do Entropia. Diferente de sistemas engessados que exigem conversões ou suplementos à medida que a campanha avança, o Entropia permite que personagens e narrativas cresçam organicamente — tanto em poder quanto em complexidade narrativa.
Artifício RPG — Mas e o risco de o sistema perder coesão com tantos grupos criando material próprio?
Conti — “Esse risco é real. Mas é bonito. A gente prefere isso a criar uma igreja com dogma. O Entropia é um convite. Não uma doutrina.”
E esse convite está sendo aceito. Desde a liberação de materiais prévios para assinantes da D20 Saga, o sistema começou a circular em mesas de teste, eventos, fóruns e servidores de Discord. Já há grupos criando fichas personalizadas, aventuras one-shot, e até cenários inteiros baseados nas regras abertas.
Peterson — “Se uma criança de escola pública baixar o PDF e jogar com os amigos no recreio, já valeu. Esse é o tipo de sucesso que a gente quer.”
Não há otimismo marqueteiro aqui. Há uma esperança lúcida, quase pedagógica. Eles sabem que Entropia não vai agradar a todos. Nem querem isso. O objetivo nunca foi ser um novo padrão de mercado — e sim uma ruptura.
Conti — “Tem gente que vai amar. Tem gente que vai estranhar. E tem gente que vai odiar. Isso faz parte. Mas o que a gente não queria era um sistema neutro. Um sistema que agradasse todo mundo e não dissesse nada.”
A provocação é clara. Entropia não é uma alternativa amena. É uma interrogação. Um ponto de atrito.
Artifício RPG — Vocês consideram o Entropia um gesto político?
Peterson — “Acho que todo sistema é. Mesmo quando diz que não é. Quando você escolhe o que colocar na ficha, você está dizendo algo. A ficha também é texto.”
Conti — “E o que você tira, também. Tirar o atributo social, por exemplo, foi um gesto. A gente queria que o jogador falasse. Não que o dado falasse por ele.”
A ficha como linguagem. O sistema como estética. A mecânica como dramaturgia. Não é todo dia que um RPG brasileiro assume essas bandeiras com tamanha clareza. Muito menos em um mercado onde a tradução ainda reina como modelo predominante de criação.
Por isso, o futuro do Entropia não depende apenas da ficha, mas da comunidade. Daqueles que aceitarem o convite — e tiverem coragem de se expor ao caos.
Conti — “E é por isso que ele é Entropia. Porque a gente não controla mais.”
A última pergunta da entrevista é inevitável:
Artifício RPG — E se Entropia for só mais um jogo?
Peterson e Conti (em uníssono) — “Se for, que seja um jogo que explodiu bonito.”
Talvez seja isso que o Entropia propõe no fim das contas: não a durabilidade, mas o impacto. Não a longevidade, mas a faísca. Não o controle — mas o incêndio. Um sistema feito para desestabilizar. Para provocar. Para incendiar as mesas.
E se queimar? Que queime com estilo. Porque, como disse anteriormente Conti, com a tranquilidade de quem joga de olhos abertos para o abismo:
“Milagre é só entropia em câmera lenta.”
Making of: As Mecânicas Que Quase Afundaram o Entropia
“Quando a gente decidiu deixar o caos acontecer, a primeira coisa que explodiu foi o nosso próprio planejamento.” — Peterson Rodrigues
Todo jogo nasce de uma promessa. Mas também de uma série de falhas, tropeços e decisões abortadas. E se há um elemento que costura a criação do Entropia RPG do começo ao fim, esse elemento é o risco. O risco narrativo, o risco editorial — e o risco de tudo dar errado antes mesmo do playtest.
Nesta parte inédita, revelamos o making of do sistema que quase implodiu antes de nascer. São bastidores não contados, decisões que foram rasgadas da lousa, mecânicas que pareciam brilhantes — até serem testadas — e escolhas que, por pouco, não comprometeram a proposta radical do jogo.
A Entropia que Começou Artificial
Uma das primeiras ideias que quase afundou a proposta era, ironicamente, a forma como a entropia era usada no jogo.
Peterson — “No começo ela estava ali como um bônus aleatório. Tipo a feitiçaria selvagem do Feiticeiro do D&D, mas um pouco mais contido.”
A ideia parecia segura. Controlável. Mas era justamente isso o problema. O caos era manso demais. E o jogo, ao tentar simular a imprevisibilidade, acabava escorregando para o artificial.
Conti — “Ela não tinha ainda essa potência de virar tudo de cabeça pra baixo. A gente precisou encontrar essa forma de deixar ela apimentada, perigosa, imprevisível.”
Foi uma virada de chave decisiva. A entropia deixou de ser um botão do mestre e passou a funcionar como um relógio oculto — quando ele dispara, ninguém segura. Uma escolha que exigiu reescrever grande parte do sistema, mas que evitou um desastre maior: tornar o caos previsível.
A Falsa Promessa de Equilíbrio
Outro momento crítico do projeto foi a tentação do equilíbrio sistêmico. Como todo designer experiente, Peterson e Conti se perguntaram: como evitar que jogadores explorem brechas? Como manter a paridade entre arquétipos, traços, técnicas?
Conti — “A gente chegou a tentar uma matriz de balanceamento. Era quase um Excel. Mas aí a ficha começou a ficar igual a de qualquer sistema que a gente queria evitar.”
Esse experimento durou pouco. Mas foi suficiente para mostrar que, se o Entropia quisesse realmente romper com os modelos engessados, teria que abdicar do mito da simetria total. A escolha, então, foi deliberada: deixar que o desequilíbrio simbólico guiasse a construção dramática.
O Trauma da Diplomacia
Poucos elementos foram tão discutidos — e tão rapidamente descartados — quanto o atributo social. Sim, o bom e velho “Carisma”.
Peterson — “Quer dançar? Faça sua dancinha. Quer convencer alguém? Argumente. O RPG é uma conversa com dados, não dados com frases.”
Durante o primeiro rascunho, o Entropia ainda flertava com a presença de um atributo social clássico, mediador de interações. Mas logo perceberam que, para que a dramatização emergisse de verdade, o dado não poderia falar por ninguém.
Conti — “Tirar o atributo social foi um gesto. A gente queria que o jogador falasse. Não que o dado falasse por ele.”
Remover esse pilar central de 90% dos RPGs modernos foi uma decisão radical — e arriscada. Mas foi também libertadora. E, nas palavras dos próprios criadores, essencial para manter a coerência da proposta.
As Escalas que se Perderam no Caminho
Outra armadilha quase fatal foi a criação das escalas narrativas. A ideia era permitir que o jogo acontecesse em múltiplas camadas: cena, missão, crônica. Mas, no papel, essa estrutura se embaralhava com facilidade.
Conti — “No começo parecia uma boa. Mas a gente se perdeu. A mesa queria jogar, e a gente estava explicando termos demais. Simplificamos. Tiramos o que era excesso. Mantivemos só o que criava tensão.”
Esse processo de poda — de cortar a complexidade conceitual em nome da fluidez prática — foi uma das decisões mais difíceis. E só foi possível porque o time colocou a mesa acima da teoria.
O Dado que Quase Sumiu da Mesa
Em um determinado momento do desenvolvimento, houve também uma proposta para retirar o dado de vez da equação principal — usar cartas, tokens ou até jogadas narrativas sem rolagem. Era uma provocação: e se o caos fosse todo simbólico?
Peterson — “Ficou bonito na ideia. Mas, na prática, matou a tensão. O dado é o sexto jogador. Ele precisa estar ali. Ele precisa agir. Ele é quem grita quando ninguém quer decidir.”
Essa fala sintetiza a importância do dado como entidade simbólica. Ele não é apenas uma ferramenta de aleatoriedade. Ele é evento. Ele é sentença. E retirá-lo, ainda que por segundos, quase custou a alma do jogo.
A Tentação de Agradar Todo Mundo
Por fim, o erro que pairou sobre todas as fases do projeto: tentar ser acessível sem perder radicalidade. Equilibrar didática e provocação. Chegar perto do público sem domesticar a proposta.
Conti — “A gente quase caiu nessa. De querer explicar tudo, prever tudo, facilitar tudo. Mas aí percebemos: RPG é relação. Não é tutorial. E o Entropia só faz sentido se o jogador tiver que ouvir o caos. Não só o manual.”
Foi esse o ponto de ruptura final. E também de libertação. A equipe aceitou o risco. Aceitou o caos. Aceitou o fato de que criar algo novo exige não só criatividade — mas renúncia.
Peterson — “Teve muita coisa que parecia boa e não funcionava. Mas a beleza da entropia é essa: ela derruba o que é fraco. E deixa de pé o que sobrevive ao impacto.”
No fim das contas, o Entropia é isso. Um sistema que sobreviveu ao próprio colapso. E que, por isso mesmo, se tornou o que é. Porque, como já disseram em mais de uma ocasião.
Quando o Caos Vira Cultura
“O Entropia não quer ser eterno. Quer ser inesquecível.”
Há RPGs que nascem prontos. Outros, que nascem com pressa. E há os que nascem de uma rachadura — como um raio que parte a ficha ao meio e reconstrói o jogo no susto. O Entropia é esse último tipo.
Durante horas de conversa com Peterson Rodrigues e Lucas Conti, ficou claro que o sistema não surgiu como produto, nem como hobby profissionalizado. Ele nasceu como ruptura: uma recusa em continuar traduzindo jogos que não dizem mais o que se quer dizer. E, acima de tudo, uma vontade radical de produzir um sistema onde a incerteza não é erro de cálculo, mas motor narrativo.
A proposta, como vimos, é corajosa: remover classes, substituir XP por protagonismo simbólico, abandonar o atributo social, dar agência ao dado como sexto jogador, e lançar tudo isso em PDF gratuito com licença aberta. Em um país onde a maioria dos sistemas autorais ainda hesita entre a homenagem tímida e a cópia estilizada do que vem de fora, Entropia decide romper. Não pela ousadia gratuita — mas pela necessidade interna.
Conti fala em gesto. Peterson, em estrutura. Um com linguagem de rito. Outro com visão de empresa. Juntos, fazem do Entropia algo raro: um sistema com corpo técnico, mas alma artística.
E o que se desenha não é um RPG pronto. É um convite.
Um convite ao jogador que cansou de buildar combos e quer construir personagens que sangram. Um convite ao mestre que enjoou de campanhas lineares e quer dramatizar a queda. Um convite à comunidade que não quer mais esperar que alguém lá fora autorize a criação — e decide criar agora, com as próprias mãos, mesmo que elas tremam.
Porque tremor, aqui, não é defeito. É linguagem. É estética. É entropia.
No final, talvez o Entropia não precise ser o novo grande sistema brasileiro. Talvez ele não queira ser isso. Talvez ele só queira ser o fósforo — e que o resto seja combustível.
Talvez ele só queira explodir bonito. E que, no clarão dessa explosão, o RPG brasileiro veja, por um instante, o que pode ser quando não está preso a trilhos.
Como diz o próprio livro do sistema, e como repetiram os criadores em diversos momentos da entrevista:
“O Entropia não é o fim do mundo. É o começo de outro.”
O post Entropia RPG 0.1 é lançado pela D20 Culture foi escrito pelo Artifício RPG, especialista em conteúdo de RPG em Português!
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Artifício RPG. lançou um novo conteúdo!
Entropia RPG é mais que um playtest — é uma ruptura criativa no RPG brasileiro. Baixe grátis, jogue e leia nossa análise com entrevista exclusiva.
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Charles Corrêa, também conhecido pelas alcunhas “Overmix” ou “Nandivh”, é um apaixonado por RPG e desenvolvimento web. Residente em Porto Alegre/RS, estuda programação desde 2001 e trabalha na área desde 2010.
No mundo do RPG, iniciou sua jornada como jogador em 2014 e, desde 2018, dedica-se a mestrar campanhas envolventes e desafiadoras, especialmente dentro dos gêneros de horror e dark fantasy.
Com experiência em sistemas como D&D 5e, Pathfinder, Cthulhu Dark, Vaesen e, mais recentemente, Savage Worlds, Charles também nutre uma curiosidade especial por Rastros de Cthulhu.
Conhecido entre seus jogadores como um mestre sádico, ele adora desafiar até mesmo os mais experientes combeiros, criando missões e encontros que exigem estratégia e criatividade. Inicialmente utilizando o Roll20 como plataforma, atualmente conduz suas campanhas no Foundry VTT, sempre buscando formas de melhorar a experiência de seus jogadores, aplicando seus conhecimentos em programação para aprimorar a jogabilidade e imersão.
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